Nossa cultura é preta. Muitos costumes cotidianos atuais nasceram do convívio entre negros e índios quando foram escravizadas no Brasil. Apesar de serem mais visíveis em festejos e folguedos, muitas das manifestações da cultura popular são fruto da experiência de homens e mulheres que resistiram fazendo rituais da própria cultura e religiosidade, mesmo em uma terra diferente, marcada por imposições de costumes cristãos.
Também buscaram transformar a batalha diária em diversão, como o é o caso dos trabalhadores rurais, com a exploração da cana-de-açúcar e a criação do Cavalo Marinho e do Maracatu Rural, ou a resistência negra quilombola, com o jogo de capoeira. Das histórias indígenas, quem nunca escutou os feitos do Curupira, da Comadre Fulozinha, do Saci Pererê e dos caboclos do mato?
Durante o ciclo junino também há no Candomblé comemorações da colheita do milho verde, com comidas a base de milho como a canjica e a pamonha, que são consideradas iguarias para agradar Xangô, orixá do fogo, da justiça, da fartura. Nos terreiros de Candomblé, a pipoca também é comumente utilizada em rituais de limpeza do corpo, ou é oferecida a Omulu, orixá da cura, de acordo com a professora doutora em História Social pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), Valéria Costa, autora da tese Trajetórias negras: os libertos da Costa d’África no Recife (1846-1890).
O acarajé também é outra comida feita nos terreiros para ser ofertada a Iansã, orixá dos ventos da tempestade, senhora dos mortos (eguns). “Várias pessoas, independente de sua prática religiosa, consomem pipoca, canjica, pamonha, acarajé… E por mais que sejam aversas às religões de matriz africanas, estão partilhando de hábitos desta religião tão fascinante, que mantém vínculo intimo com a natureza”, diz a professora.
Além da ligação com a espiritualidade, com o sagrado, com a promoção da cultura e com orientação político-social, os terreiros também são importantes para a alimentação e combate à fome e à pobreza dentro das comunidades. Segundo a “Pesquisa Socioeconômica e Cultural das Comunidades Tradicionais de Terreiro de Recife e Região Metropolitana”, realizada pelo Ministério do Desenvolvimento Social e Combate a Fome (MDS), com parceria com a UNESCO, em 2011, ao todo, 92% dos terreiros das quatro regiões metropolitanas pesquisadas (Recife, Belém, Belo Horizonte e Porto Alegre) têm ações de preparo e distribuição de comidas para as famílias do entorno.
Em Pernambuco, as danças e músicas da cultura popular como maracatu, coco, caboclinho, ciranda e cavalo marinho não apenas representam manifestações tradicionais de resistência por si só, mas influenciaram diversos movimentos musicais. “As tradições populares, mantidas principalmente nas periferias, oriundas dos negros e dos índios, influenciaram, por exemplo, o Movimento Mangue, dando visibilidade internacional e acadêmica à cultura popular. A cultura pernambucana é espetáculo, é tese de doutorado. Só falta mais apoio do governo para os projetos”, argumenta o percussionista, integrante do Maracatu Estrela Brilhante, da Escola de Samba Galeria do Ritmo do Morro da Conceição e ex-Cascabulho, Jorge Martins.
Segundo a professora Valéria Costa, é importante que as pessoas conheçam e respeitem as diferenças culturais. “É importante acabar com o preconceito e desmistificar as inverdades e ilusões que a cultura judáico-critã semeou na sociedade. Africanos e indígenas fazem parte de nosso povo, foram os fomentadores do que somos hoje em dia. Na medida em que a sociedade for conhecendo mais sobre a culura negra e indígena, violências como o racismo e a intolerância religiosa vão sendo amenizadas, quiçá, estringuindo-se de nosso convívio.”
Na Região Metropolitana do Recife, inúmeros lugares mantém a tradição negra seja nos cultos religiosos, manifestações musicais e de dança, ou junto a projetos socio-culturais. Quer conhecer mais sobre a cultura e religião de matriz afro-indígena? Preparamos um roteiro cheio de toques, coco, capoeira, maracatu e história. Axé!
Diário de Pernambuco