De 155 famílias baianas que tiveram entes queridos falecidos no primeiro semestre deste ano, 108 recusaram a doação de órgãos, de acordo com dados da Secretaria de Saúde do Estado (Sesab). Com isso, a Bahia registra um índice de negativa de 70% – bem acima da média nacional, que é de 44%.
A carência de doações prejudica as pessoas que estão na fila de espera para os transplantes. Até a última quinta-feira, o Sistema Nacional de Transplantes (SNT) registrava a espera de 1.023 pacientes para transplantação de córnea, 999 para rim, 53 para fígado e 25 para medula óssea na Bahia.
A falta de informação sobre o tema é apontada como o principal motivo para o estado estar com um índice de recusa à doação acima da média nacional.
“Apesar de termos intensificado as campanhas sobre o assunto e de termos, inclusive, o Dia Nacional de Doação de Órgãos celebrado ontem, muitas pessoas ainda não entendem como funciona esse processo. Não sabem que é realizado para um paciente que não tem chances de cura, que está em fase terminal”, explica o coordenador estadual de transplantes da Sesab, Eraldo Moura.
Mas, e se a pessoa que estivesse à espera de um transplante fosse você, seu filho ou sua mãe? Foi justamente isso o que levou a vendedora Maria José Santana, de 41 anos, a autorizar a retirada dos órgãos do filho. André Odail, 19 anos, que teve morte cerebral após levar um tiro na cabeça em um bar.
A vendedora revela que, apesar da decisão, dúvidas surgiram no momento da escolha. “Quase não concordei com a doação. Eu queria ter certeza que valeria a pena, gostaria de saber para onde iriam as partes do corpo dele. Quem me garantia que era para ajudar as outras pessoas mesmo?”, indaga.
O sigilo das informações entre o doador e o receptor tem a ver com o vínculo que pode ser estabelecido entre os indivíduos envolvidos na operação. Há uma possibilidade de uma das partes desenvolver um afeto exacerbado pela outra e acarretar mal-estar na relação, é o que esclarece a coordenadora médica da equipe do Banco de Olhos da Bahia, a oftalmologista Milla Sampaio.
Porém, a Central de Notificação, Captação e Distribuição de Órgãos da Bahia (CNCDO/BA) garante que uma carta é encaminhada para as famílias que autorizam a doação. O documento tem o objetivo de relatar o sucesso ou a frustração da realização dos transplantes executados com os órgãos oferecidos.
Ser um doador
Cabe à família a decisão de doar ou não os órgãos dos falecidos. Qualquer indivíduo pode ser um dador, exceto aqueles que possuem doenças infecciosas.
Os pacientes devem ter tido diagnóstico de morte encefálica para disponibilizar ao banco de transplantes o coração, pulmões, fígado, pâncreas, intestino, rins, córnea, vasos, pele, ossos e tendões.
Cidadãos vivos também podem doar. São capazes de ceder um dos rins, parte da medula óssea, do pulmão e do fígado. A Lei nº 9.434/97 permite que o procedimento seja feito sem autorização judicial, caso os pacientes sejam cônjuges ou tenham parentesco até 4º grau.
O primeiro caso de transplante duplo – rim e fígado – do Hospital São Rafael (HSR) foi o de Antônio Carlos Martins, 56. Ele relata que, antes de sofrer de insuficiência renal, era preconceituoso com as pessoas que via andando na rua com cateter.
“Eu pensava: ‘Deus me livre usar um negócio desse’. Quando surgiu a campanha Seja um Doador eu falei que não sairia da minha casa para doar nada, e a vida me ensinou”, relembra.
Antônio tinha uma vida ativa, jogava bola e caminhava diariamente, até que começou a sentir muito cansaço e perceber o tom de sua pele um pouco amarelada. Após quatro meses de diferente diagnósticos, os exames detectaram insuficiência renal crônica (os dois rins haviam parado de funcionar).
Durante todo o processo de hemodiálise (tratamento que consiste na remoção do líquido e substâncias tóxicas do sangue como se fosse um rim artificial), o fígado de Antônio também apresentou problemas com varizes esofágicas, que se romperam.
Foram quase dois anos na fila de espera. Entre viagens para São Paulo e visitas a diferentes hospitais de Salvador, o paciente foi contemplado com os dois órgãos de uma só vez. Atualmente, o soteropolitano se declara doador. “Se cada um convencer uma família a doar, já é uma grande ajuda para quem precisa”, frisa Antônio.
No Brasil
O Brasil é o país latino-americano com maior percentual de aceitação familiar, ficando acima da Argentina (52,8%), Uruguai (52,6%) e Chile (51,1%), segundo o Ministério da Saúde (MS).
O MS também aponta que cerca de 56% das famílias já autorizam a doação de órgãos. Entre os estados com mais doadores efetivos estão Santa Catarina, Ceará e São Paulo.
No primeiro semestre de 2014, Mato Grosso, Amapá, Roraima e Tocantins não tiveram registros de doadores reais, de acordo com a Associação Brasileira de Transplante de Órgãos (ABTO).
“A taxa nacional de aceitação familiar aumentou, porém a estatística ainda é muito baixa para o potencial que o país tem para a transplantação. Os números de doadores da Bahia também cresceram, mas ainda é um percentual pequeno”, enfatiza o presidente da ABTO, o médico Lúcio Pacheco.
Exemplo – O baiano José Vasconcelos Freitas, 64, foi contemplado com um novo rim após três anos de espera.
Como forma de agradecimento, ele decidiu fazer parte de um movimento em prol dos pacientes à espera de transplantação, e se tornou presidente da Associação Renal da Bahia.
“Eu vi de perto o desespero de quem passa 12 anos em uma fila aguardando um órgão. E quero usar essa força e disposição que conquistei após a doença, ajudando outras pessoas”, comenta.
Após sete meses de operado, Vasconcelos promove eventos de conscientização sobre a importância da doação de órgãos em escolas e comunidades de Salvador.
“A ideia é mostrar, de forma didática, como é simples e gratificante essa ajuda ao próximo, que poderia ser alguém de nossa família”, destaca.
Fonte: A Tarde