Um estudo realizado no Departamento de Psiquiatria da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e na University of Connecticut (UConn), nos Estados Unidos, apontou para uma série de violações ao Código Brasileiro de Autorregulamentação Publicitária cometidas pela publicidade de cerveja no Brasil, em especial ao princípio da proteção a crianças e adolescentes.
A pesquisa Propaganda de bebidas alcoólicas e relação com o público adolescente, conduzida por Alan Vendrame com o apoio da FAPESP, concluiu que as regras estabelecidas pelo Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária (Conar) não foram cumpridas pelas propagandas avaliadas.
Foram analisados cinco anúncios de grandes marcas de cerveja, selecionados entre os 30 veiculados na mídia brasileira de novembro de 2010 a março de 2011.
A metodologia utilizada para investigar o cumprimento das regras envolveu a aplicação de questionários a um grupo de 150 alunos da rede pública de ensino do estado de São Paulo e a 35 profissionais de diferentes áreas que atendem crianças e adolescentes, entre médicos, promotores de justiça, educadores e outros. Cada uma das diretrizes do Conar foram traduzidas em perguntas e as respostas dos grupos permitiram aos pesquisadores cotejar as peças de publicidade com as normas do Código.
Os adolescentes e profissionais participantes da pesquisa foram questionados, por exemplo, se a mensagem veiculada pelos anúncios aparentava ser dirigida a menores de idade, o que contraria as normas do Conar. No entendimento de 79% dos integrantes do grupo de profissionais, uma das campanhas viola essa regra, e o mesmo julgamento foi feito por 81% dos adolescentes consultados.
Também foi perguntado aos participantes se as propagandas avaliadas associam o consumo de álcool à direção de carros e motocicletas, avaliando se as peças violam o princípio do consumo com responsabilidade social. Uma das campanhas publicitárias fez tal associação no entendimento de 61% dos profissionais e 57% dos adolescentes.
“As normas foram estabelecidas para que a publicidade de bebidas alcoólicas promova seu produto de forma socialmente responsável. Mas, de acordo com as respostas dos adolescentes e dos profissionais que participaram do estudo, a conclusão é que ocorre uma violação sistemática delas, expondo o público ao risco de iniciar o consumo precoce de álcool e a todos os prejuízos decorrentes disso”, disse Vendrame.
Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), o consumo de álcool está relacionado a 3,3 milhões de mortes por ano. Dessa forma, afirmou Vendrame, o controle eficiente da propaganda de cerveja entre crianças e adolescentes é uma questão de saúde pública.
“A proteção de populações vulneráveis, como crianças e adolescentes, é uma das estratégias globais para reduzir o consumo nocivo de álcool. Adequar a publicidade das bebidas alcoólicas de modo a não incentivar seu consumo entre menores de idade terá impacto também nas gerações futuras.”
Revisão da legislação
O Código Brasileiro de Autorregulamentação Publicitária obedece a dois princípios ao tratar da publicidade de bebidas alcoólicas: o do consumo com responsabilidade social, que determina que a publicidade não deverá induzir ao consumo exagerado ou irresponsável, e o da proteção a crianças e adolescentes, que define que a publicidade não terá esse público como alvo.
Entre as normas, está, por exemplo, a de não empregar “linguagem, expressões, recursos gráficos e audiovisuais reconhecidamente pertencentes ao universo infanto-juvenil, tais como animais ‘humanizados’, bonecos ou animações que possam despertar a curiosidade ou a atenção de menores nem contribuir para que eles adotem valores morais ou hábitos incompatíveis com a menoridade”. Outra norma determina que as propagandas de cerveja não exibam pessoas que tenham ou pareçam ter idade inferior a 25 anos.
No entanto, de acordo com as respostas dos participantes do estudo, todos os anúncios avaliados violaram pelo menos uma das 17 diretrizes do Código, sendo que um chegou a violar 11 delas.
Para Vendrame, os resultados evidenciam a necessidade de uma revisão da legislação que regula a publicidade de bebidas alcoólicas. O parágrafo 4 do artigo 220 da Constituição Federal determina que esse tipo de publicidade seja sujeita a regulamentação legal, mas, para o pesquisador, a lei 9.294, instituída em 1996 com esse fim, é falha.
“Essa lei inclui no ordenamento jurídico brasileiro um erro de natureza grave do ponto de vista científico, definindo como bebida alcoólica, para fins de publicidade, somente aquelas cujo teor alcoólico é superior a 13 graus Gay Lussac. Dessa forma, apenas algumas poucas bebidas, como as destiladas, ficam sujeitas ao dispositivo legal.”
A publicidade de cerveja, cujo teor alcoólico é consideravelmente inferior, não é contemplada pela legislação, e a indústria e as agências de publicidade são orientadas a seguir as diretrizes do código do Conar nas campanhas de promoção do produto. Em caso de descumprimento, a penalidade máxima aplicável é a retirada da propaganda.
Desde 1996, uma série de projetos de lei tem tramitado no Congresso Nacional a fim de corrigir o erro conceitual do ordenamento jurídico, adequando a definição de bebida alcoólica à literatura científica, que determina ser acima de 0,5 grau.
“É necessária uma legislação que trate a questão como um problema de saúde pública e, baseada em evidências científicas, imponha restrições legais rígidas às práticas de comercialização de bebidas alcoólicas e à promoção do consumo por crianças e adolescentes”, afirmou Vendrame.
Os resultados do estudo foram publicados em artigo na revista Alcohol and Alcoholism, da Oxford University Press e do Medical Council on Alcohol, do Reino Unido.
Fonte: Agência Brasil