A Corregedoria da Polícia Civil e a Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa do Rio (Alerj) apuram a conduta de policiais civis durante a operação realizada na Favela da Coreia, na Zona Oeste do Rio, para prender o traficante Márcio José Sabino Pereira, conhecido como Matemático.
Imagens das câmeras do helicóptero da Polícia Civil obtidas pelo Fantástico mostram os agentes na aeronave atirando a uma altura entre 20 e 40 metros. Casas e prédios foram atingidos. Especialistas em segurança questionam a operação, que foi classificada pela Chefe da Polícia Civil, delegada Martha Rocha, como “desproporcional”.
As imagens são de 11 de maio de 2012. O corpo do traficante Matemático foi achado na madrugada do dia seguinte, dentro de um carro. No tiroteio, nenhum morador foi ferido.
A pedido do Fantástico, o especialista em segurança digital Wanderson Castilho checou se as imagens do vídeo obtido não sofreram algum tipo de manipulação. De acordo com a análise, a imagem tem “alto nível de autenticidade”. “A análise sequencial das imagens, da cronologia, da sintonia entre quem está narrando com a imagem mostrou-se ter um alto nível de autenticidade”, disse Wanderson.
Matemático era um dos maiores traficantes do Rio, com ficha criminal extensa: 26 inquéritos por tráfico de drogas, associação para o tráfico e homicídios. Ele comandava o tráfico em quatro favelas da Zona Oeste, uma das áreas mais populosas da cidade. Foragido do sistema penitenciário desde 2009, quando saiu para trabalhar numa funerária e fugiu. Quando morreu, o traficante tinha 11 mandados de prisão. O corpo de Matemático foi achado na madrugada de 12 de maio de 2012, dentro de um carro, a cerca de três quilômetros, após uma operação da PM.
PF monitorava traficante
A Polícia Federal monitorava a quadrilha de Matemático havia cinco meses. Os agentes usavam a espionagem eletrônica, rastreadores e escutas telefônicas que permitiam saber a localização dos bandidos. Naquela noite, as informações foram repassadas à equipe da Polícia Civil, que estava a bordo do helicóptero. As imagens do vídeo foram gravadas pela câmera do helicóptero da Polícia Civil que fazia a operação. A câmera tem um sensor que detecta o calor de corpos e objetos.
Na perseguição a Matemático, os agentes avistam um homem que, segundo a polícia, é o traficante, saindo de uma casa. No entanto, no vídeo, a tripulação diz que o homem se parece com Matemático. Antes dos tiros, o helicóptero está a uma altitude entre 900 e 1200 metros. A aeronave desce até uma altura entre 20 e 40 metros para a ação dos atiradores.
O homem assume a direção do veículo. Assim que o carro entra numa esquina, os policiais dialogam entre si e falam “Vamos incendiar?”. Assim que o alvo é localizado, os agentes dizem: “Pega, pega, pega!” e disparam tiros em sequência em direção aos motoqueiros que cruzam a rua.
Por um momento, o carro sai do alcance da visão da câmera do helicóptero. Os agentes percebem que o carro dos traficantes bateu e que um deles, supostamente Matemático, foi baleado. Em seguida, uma roda de pessoas se forma para ver o que está acontecendo. Homens que estariam carregando fuzis correm e mais tiros são disparados pela polícia.
“Apesar de a imagem ser feita a uma distância muito longa, e à noite, mesmo assim por conta do biotipo a gente tinha certeza que aquela pessoa que saiu da casa da mulher dele era o Matemático”, explica o piloto Adonis Lopes de Oliveira, que comandava a operação no dia.
Blindado da PM quebra em operação
Adonis diz ainda que o objetivo naquele dia era monitorar o traficante, para que ele fosse interceptado pela PM. Entretanto, o carro blindado da PM quebrou. “O alvo está baleado aí. Pergunto pra você: cara, a equipe da Polícia Militar está com dificuldade de chegar aí, correto? Eles tão sem blindado”, diz um trecho do vídeo.
Em nota, a Polícia Militar afirma que um grande efetivo foi mobilizado para a operação. Na entrada da Favela da Coreia houve troca de tiros, que atingiram os pneus do blindado. A nota diz ainda que mesmo sem o apoio do veículo, os PMs entraram na comunidade sob fogo pesado e cumpriram o objetivo da operação, que era impedir a fuga de matemático.
O especialista em segurança José Vicente da Silva Filho argumenta que a prisão de Matemático deveria ser feita por meio terrestre. “Se o criminoso é tão importante, o suspeito é tão importante, a prisão dele deveria ser muito importante também, e só poderia ser feito com pessoal de terra”, conclui.
O especialista Diogenes Lucca também questiona uma operação como esta ser realizada à noite.
“É questionável fazer uma operação dessa natureza à noite. Já começa uma complicação adicional”, diz.
Perigo à noite
O piloto Adonis discorda e alega que o helicóptero tem equipamentos que permitem visão noturna. “Eu discordo. Até porque as operações mais importantes que nós fizemos nos últimos tempos foram feitas à noite, através de equipamentos de visão noturna”.
O comentarista de segurança da TV Globo, Rodrigo Pimentel, que já foi capitão do Bope, diz que os disparos foram arriscados e que os agentes não estavam usando equipamentos de visão noturna.
“Os atiradores não estão usando equipamentos de visão noturna (..). Estão utilizando da luz residual que existe no bairro pra efetuar esses disparos (..). É um tiro muito arriscado”, analisa Pimentel.
O especialista chama de “carnificina” a ação. “É carnificina (..) Não tinha menor sentido em atirar como atiraram (..) Um tiro sem qualidade, é um tiro sem compromisso”, diz.
Helicóptero atingido por tiros
O piloto diz que os tiros foram apenas de “advertência” e que depois atirou mais, para proteger o helicóptero, que também foi atingido por dois tiros disparados por traficantes. “Nesse dia nós não tínhamos alto-falantes, até porque o combinado era o 14º Batalhão prender o Matemático, então quando nós chegamos perto do carro dele nós fizemos inicialmente tiros de advertência. Logo em seguida, a gente começou a escutar muito tiro vindo em direção da aeronave. E aí a gente também revidou pra proteger, inclusive fazer a proteção da aeronave”, diz Adonis.
O especialista diz que piloto deveria ter feito o oposto, ou seja, recuado, e não se aproximado.”Em qualquer hipótese de um veículo estar atirando sobre o helicóptero, o helicóptero teria que fazer um recuo pra segurança dos próprios tripulantes”, fala.
Adonis relata que os tiros foram disparados por traficantes que estavam armados com fuzis no carro, onde estaria Matemático. No entanto, o capitão Rodrigo Pimentel diz que o fuzil pra fora, na posição que mostra o vídeo, não é uma ameaça à aeronave.
“Se o cano foi usado recentemente, o cano tá quente. Então o visor térmico consegue localizar, sim, um fuzil dentro do carro. No entanto esse fuzil pra fora do carro, nessa posição que ele está, não é uma ameaça à aeronave, não. Lembrando que ainda que fosse uma ameaça à aeronave, nada iria justificar a quantidade de tiros disparados nesse bairro residencial”, comenta Pimentel.
Prédio e casas atingidos
Prédios e casas são atingidas pelos tiros. O piloto Adonis alega que o local é freqüentado por traficantes. “Aquela rua era frequentada a maioria por traficantes, conhecemos bem aquilo ali, tanto é que não houve nenhum tipo de reclamação e não houve nenhum morador baleado naquele dia”.
Um ano depois do registro das cenas, o prédio continua com as marcas de tiro. O deputado Marcelo Freixo, presidente da Comissão de Direitos Humanos da Alerj, criticou a ação dos policiais.
“Os recursos da Polícia Civil, os recursos da secretaria de segurança, os investimentos em tecnologia não podem estar a serviço desse tipo de ação”, pontuou.
Em nota, o secretário de segurança José Mariano Beltrame afirma que “o setor especializado nessas ações tem que dar uma resposta à sociedade, e quem teve a responsabilidade de agir, tem que ter a responsabilidade de arcar com as consequências”, diz o texto.
Críticas
A Chefe de Polícia Martha Rocha afirma que o papel da polícia é prender. “Essa imagem nos leva a admitir a possibilidade de que tenha havido uma ação desproporcional. Exatamente, por isso, que a corregedoria há quinze dias já vem investigando essa ação como um todo. Eu acho que o papel da polícia é prender. A morte ela é em último caso”, fala a delegada.
Apesar das críticas, Adonis diz que o objetivo foi alcançado, sem ocorrer morte de inocentes. “A gente entende que foi uma operação legítima, onde um traficante foi morto, um traficante perigoso, ninguém foi baleado, nenhum morador foi baleado, e o objetivo foi alcançado”, enfatiza.
Para Rodrigo Pimentel, a polícia não efetuaria a série de disparos que fez se a operação fosse em um bairro de classe média.
“Se essa perseguição não fosse numa comunidade carente do Rio de Janeiro, se essa perseguição fosse num bairro residencial, de classe média, ou no centro da cidade, será que a polícia efetuaria essa quantidade de disparos? Certamente não. Essa é uma prática da polícia em comunidades carentes ainda dominadas pelo tráfico”, conclui. (G1)