Duas efemérides marcam em 2014 a passagem alucinante de Raul Seixas pela Terra. A mais urgente é a que se completa nesta quinta-feira, 20: 25 anos desde que ele pegou carona com o “moço do disco voador” e foi embora. Mas se houve mesmo um disco voador na vida de Rauzilto, este foi Gita – afinal, foi com ele que o cantor baiano decolou de vez para o estrelato – e é aí que entra a outra efeméride: este álbum, que foi o mais vendido (mais de 600 mil cópias) e o mais aclamado de Raul, completa 40 anos.
Quando, em 1974, o programa Fantástico exibiu o videoclipe da densa música homônima inspirada nos textos hindus do Bhagavad Gita – com imagens do cantor projetadas sobre ilustrações de livros de Carlos Castañeda, de pinturas de Salvador Dalí e de desenhos medievais – o Brasil inteiro percebeu que o Maluco Beleza tinha algo mais profundo a dizer que os versos irreverentes de canções como Mosca na Sopa e Ouro de Tolo.
Degraus da fama
Raul Seixas estava, então, subindo um patamar determinante em sua escalada mítica, refinando as influências musicais de Elvis Presley e Luiz Gonzaga com doses de filosofia, esoterismo, crítica social e escracho inteligente. Para isso, é claro, contribuiu muito a parceria com o letrista e futuro escritor best-seller Paulo Coelho (o filme Não Pare na Pista, em cartaz, mostra um pouco deste convívio).
Quando puseram-se a produzir Gita, após um giro pelos Estados Unidos, ambos – sobretudo, Paulo Coelho – estavam mergulhados no esoterismo do mago inglês Aleister Crowley (1875 – 1947), para quem todo homem e toda mulher é uma estrela e deve seguir livremente a sua órbita.
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Um dos projetos da dupla era fundar a Sociedade Alternativa – a “Cidade das Estrelas”, em Paraíba do Sul – que o biógrafo de Paulo Coelho, o escritor Fernando Morais, descreve como “uma comunidade inspirada na experiência desenvolvida por Aleister Crowley no começo do século 20 em Cefalu, na Sicília”.
Sociedade Alternativa era também o nome de outra música forte do disco, um hino libertário no qual Raul Seixas recitava uma espécie de versão crowleyana da Declaração dos Direitos Humanos, com a célebre frase: “Faze o que tu queres, há de ser tudo da Lei”.
Musicalmente, Gita seguia a estética raulseixista de ser rock’n’roll na alma, mas com uma abrangência rítmica universal. Assim, temos um álbum diversificado com rocks (Super-Heróis, Sociedade Alternativa, Loteria da Babilônia); baladas (Medo da Chuva, O Trem das 7, Prelúdio); repente (As Aventuras de Raul Seixas na Cidade de Thor); jazz (Moleque Maravilhoso); bolero (Sessão das 10) e country (S.O.S.).
Produzido por Marco Mazzola, o álbum também trazia diversidade nos arranjos, com orquestrações, violas, metais, percussão e até harpas, além do toque country da guitarra de Rick Ferreira, fiel escudeiro de Raulzito.
Filosoficamente, claro, Gita é libertário, com letras que questionam instituições como o casamento (Medo da Chuva), metaforizam a essência divina do ser humano (Gita) ou alardeiam um novo código moral para o homem (Sociedade Alternativa).
A alquimia Crowley-Coelho-Seixas funcionou tão bem que transformou Gita em disco de ouro. “Parecia mágica”, escreveu o multimídia Nelson Motta em seu livro Noites Tropicais, sugerindo “algo além do talento” na base criativa do disco.
Magia e política
Sobre Raul e Paulo, ele disse ainda que “gostavam de tudo que era proibido, pecaminoso, secreto e misterioso. E diziam que detestavam política”. Diziam. Mas, então, o que Raul Seixas estava fazendo vestido de guerrilheiro cheguevariano na capa do disco em plena ditadura militar?
O fato é que o sucesso estrondoso chamou a atenção do regime militar para o papo de “Sociedade Alternativa” e “Faze o que tu Queres”. Não demorou e Raul e Paulo foram convocados pela polícia para explicar a história. Raulzito foi liberado logo, mas Paulo, como mentor intelectual, pagou o pato. E nunca mais quis saber de Crowley. Afinal, nem tudo era da Lei. Mas a parceria de sucesso prosseguiria por mais alguns discos.
O que mais fica de Gita, além do refrão martelante, mântrico, de “Viva a Sociedade Alternativa!”, é a contundência espiritual da canção-título, com seus versos adaptados do famoso diálogo entre o deus Krishna e o guerreiro Arjuna e sua melodia reflexiva e sinuosa, pontuada por sinos ocasionais.
Mais comedidos que Crowley, os hindus pregavam a renúncia ao mundo material, enquanto o mago acreditava que não se deve “misturar os planos” (o espiritual com o material) e, como Nietzsche, defendia a afirmação jubilosa da vida. E foi nesta trip que Raulzito embarcou até o fim, enquanto Coelho voltou como um filho pródigo ao seio do catolicismo. Mas o ouro já havia sido feito.
A Tarde