Protestos contra o governo, protestos a favor.De qualquer lado que se olhe, é nítida a ausência das classes C e D, a maioria silenciosa que acompanha atônita e angustiada o aprofundamento das crises política e econômica.
Renato Meirelles, fundador do instituto DataPopular e profundo conhecedor dos anseios dos brasileiros remediados, explica na entrevista a seguir os motivos da ausência dos “emergentes” dos acalorados debates públicos e manifestações.
Segundo ele, a chamada nova classe média não vê legitimidade em nenhuma das lideranças políticas para tirar o Brasil do caos, considera os protestos um espaço das “elites” e não crê que o impeachment de Dilma Rousseff seria a solução mágica dos problemas. Meirelles acrescenta: a indicação de Lula para o ministério veio tarde.
CartaCapital: Como as classes C e D avaliam a atual crise política e econômica?
Renato Meirelles: Elas estão bem irritadas, pois compõem exatamente a parcela da população mais beneficiada nos últimos anos pelo crescimento da renda e a redução da desigualdade, a imensa porção que passou a ter melhores oportunidades de estudar, de obter aumento real dos salários. Estão decepcionadas com o atual cenário, basicamente pela sensação de dar uma passo para trás.
Esses cidadãos avaliam que o problema da economia é oriundo da corrupção e quem causa a corrupção são os políticos. Essa convicção alimenta o descrédito na classe política como um todo. Para piorar, elas não enxergam atualmente, em nenhum dos lados da esfera partidária, uma solução possível para a crise econômica.
Se 92% dos brasileiros acreditam que todo politico é ladrão e que a corrupção é a maior causa dos problemas econômicos, não podem achar que uma simples mudança na Presidência da República vá resolver os problemas da corrupção e, por consequência, da economia.
CC: Por que essas classes não vão às ruas, contra ou a favor do governo?
RM: A proporção da classe C nas manifestações é infinitamente menor do que a sua presença na população de forma geral. Há um motivo muito simples: temos, nas manifestações a favor do governo e nas contrárias, uma presença maior da elite.
No caso das manifestações a favor do governo, uma elite mais próxima ao considerado como intelectualidade, a classe artística. No caso dos protestos contra, uma elite econômica. Ou seja, de um lado prevalece aqueles ligados ao funcionalismo público, de outro os empresários. Não à toa, a Fiesp funciona como ponto de concentração das manifestações pró-impeachment.
Boa parte da classe C e D enxerga as manifestações como uma iniciativa de gente de uma classe social específica e a reclamar de problemas econômicos distantes dos problemas dela, das agruras do cotidiano da maioria. Mesmo as manifestações a favor do governo, frequentadas por movimentos sociais como os sem terra e os sem teto, de presença sócio-demográfica mais popular, levantam bandeiras mais especificas do que aquelas do brasileiro médio da classe C e D.
CC: Dilma Rousseff ainda tem alguma credibilidade entre os mais pobres? E o Lula?
RM: O principal responsável pela eleição de Dilma Rousseff em 2010 foi o legado do presidente Lula. Dilma foi reeleita, antes de tudo, por causa da defesa de um projeto de País e esse projeto ainda tem certa credibilidade com a população brasileira.
O presidente Lula continua a ser, mesmo após o desgaste sofridos nos últimos tempos, a personificação desse modelo de Estado, que acena com a oferta de oportunidades para grande parte da população, excluída durante anos, décadas até. Se a indicação de Lula para o ministério não tivesse sido tão traumática, se tivesse ocorrido seis meses atrás, poderia ter representado um sinal de esperança para esse contingente.
CC: O suposto programa de um eventual governo de Michel Temer é extremamente liberal. Sugere cortes nos gastos sociais, limitações ao SUS e às universidades públicas, privatizações. Em resumo, menos Estado. É o que essa população deseja?
RM: Existe nas classes C e D uma demanda muito grande por serviços públicos mais eficientes, mais vagas nas universidades, um serviço de saúde publica que de fato consiga fazer com que, em momentos de necessidade, elas sejam bem atendidas, com menos filas nos hospitais.
Essas demandas são, portanto, de eficiência, não de uma presença menor do Estado. Enquanto parte dos políticos defendem um Estado grande, em contraposição a outra parcela a favor de um Estado muito pequeno, a classe C sonha com um Estado vigoroso, presente no dia-a-dia, capaz de promover a igualdade de oportunidades.
Nem um Estado grande paralisado, nem um Estado pequeno e distante dos anseios da população. É preciso entender que um Estado forte não é necessariamente um Estado público, com hospitais públicos, escola públicas. Vou dar um exemplo, o ProUni. Trata-se do maior programa de bolsas universitárias do mundo e é basicamente realizado por meio das universidades privadas.
CC: O embate político provocou o fortalecimento de discursos de feições fascistas, autoritárias. De negação do outro, de agressão. Como o avanço da polaridade contaminou as classes C e D?
RM: Infelizmente o Fla-Flu político tem afastado o brasileiro médio do debate politico. Ele percebe o extremismo de ambos os lados. Quando alguém é agredido por causa da cor da camisa, quando se pergunta à empregada doméstica em quem ela votou para decidir se ela continua contratada ou não, consolidam-se os extremos, mas excluem-se ao menos dois terços da sociedade brasileira da discussão.
Na prática, o debate acirrado leva a um afastamento do brasileiro médio. Não custa lembrar: quem sempre sofreu com a discriminação no País foram as classes C e D. Elas são majoritariamente negras e volta e meia são acusadas de vender seu voto.
CC: O brasileiro médio teme uma troca de governo?
RM: O temor sobre o futuro do Brasil caso ocorra o impeachment da Dilma existe desde o ano passado. Aliás, ele aflorou no segundo turno em 2014, basta lembrar que a oposição perdeu a eleição apesar de 73% dos brasileiros desejarem uma mudança.
E por que havia esse desejo e mesmo assim Dilma Rousseff foi reeleita? Pela incapacidade da oposição de propor um futuro. O movimento pró-impeachment tem crescido por conta da piora no ambiente econômico, apesar de a oposição continuar a não apresentar uma alternativa. A insatisfação é tão grande que começa a levar um boa parte dos brasileiros a buscar uma saída, mesmo se for uma saída desesperada.
CC: E como alcançar esse eleitorado?
RM: Os defensores do governo usam o argumento da falta de base jurídica para o impeachment, recorrem ao termo golpe. A oposição se vale do discurso contra a corrupção. Mas a discussão que interessa à maioria é como superar a crise econômica, como o Estado vai gerar oportunidade.
Se os defensores do governo passassem a fazer uma discussão sobre os rumos do Estado brasileiro, sobre o futuro, provavelmente arregimentariam mais aliados. Há uma unanimidade na necessidade de combate à corrupção, mas a ideia de um Estado presente na vida dos cidadãos, defendida pelo governo, também tem uma posição majoritária. Tanto a situação quanto a oposição erram o discurso.
CC: Haveria alguma reação caso um governo formado depois de um eventual impeachment significasse um retrocesso em relação às conquistas obtidas por essas classes nos últimos anos?
RM: Independentemente do que qualquer força politica possa fazer querer acreditar, teremos tudo no Brasil nos próximos seis meses, menos paz. Na eventualidade de Dilma Rousseff barrar o impeachment no Congresso, o movimento oposicionista vai continuar a crescer.
Na eventualidade do vice Michel Temer assumir o governo, provavelmente teremos ainda muita gente na rua para a defesa de seus direitos, principalmente se for adotado um ajuste fiscal no qual quem paga a conta são os mais pobres. A incógnita hoje é qual a Ponte para o Futuro Social, para fazer uma referência ao plano econômico apresentado pelo PMDB.
Quais as propostas para a geração de oportunidades nas camadas mais pobres? O que Temer ofereceria à sociedade? Esse programa vai ser fundamental para um eventual sucesso ou fracasso de uma gestão do vice-presidente. O fato é que não existe uma liderança política capaz de propor e conduzir um pacto para tirar o Brasil dessa situação. Nunca antes sentimos tanto a falta de um estadista.
Carta Capital