Toda história começa com um encontro, e nele, toda a miríade de possibilidades que esse desenrolar pode ter. A fantástica jornada de tornar-se um casal, com todo tipo de aventura. Da tempestade à calmaria, do vale ao mais alto pico, da alegria à tristeza, da dor ao prazer, do amor ao ódio. Nem sempre há finais felizes, nem sempre os fins justificam os meios, ou os meios justificam os fins. Ser casal é aventurar-se por caminhos desconhecidos, é aceitar jogar um jogo sem conhecer claramente suas regras. Que mudam no decorrer do tempo, que surpreendem de diferentes sentidos. Ser casal é construir uma história e viver dentro dela. E para que seja uma construção com algumas partes felizes, faz-se necessário extrema habilidade.
A relação acontece no terreno das emoções, que não deixa de ser um jogo de poder. Ao se encontrarem, invariavelmente, o casal cria duas instâncias: o senhor e o escravo. Conceito este, estabelecido pelo filósofo alemão Georg Hagel. Isso porque, o ser humano almeja certos desejos, diferente dos animais que desejam coisas, por exemplo, alimentos. Essa batalha começa na mente e se personifica no real. Eu desejo que tu desejes o que eu desejo. Ambos tem essa mesma intensão, o jogo então começa, e em algum momento alguém acaba por ceder. Quando isso acontece, este torna-se o escravo, pois abriu mão de seu desejo e aceitou o desejo do outro. Ora, o que faz com que alguém abra mão de seu desejo? O medo. E quando se trata de casal, normalmente o medo é de perder, ser abandonado. Com tal dialética, Sartre irá observar que na relação amorosa, quem ama mais normalmente é submetido, é o escravo. Enquanto o que ama menos é quem submete, é o senhor.
O mais forte, o então “vencedor”, ocupa o lugar de senhor. Em princípio isso até que pode ser interessante, mas com o tempo se torna enfadonho. Não tenho mais um ser humano livre, pensante, autêntico, senão um autômato, um escravo ao meu lado. Que faz para agradar, que faz por medo de perder, que faz porque apenas reproduz desejos alheios. Queres uma rainha, um rei ao teu lado, ou queres um escravo? Por outro lado, ao que se impõe o lugar de escravo, é o sujeito ativo da história, pois é quem torna tudo possível. É quem põe tudo em movimento e dá vida ao relacionamento. E nisso vemos sua criatividade, sua liberdade florescer. Enquanto o senhor espera, passivo, que façam por ele. É como se ele não participasse da relação, senão um mero espectador. Se tal dinâmica permanece, o escravo pode negar que foi negado, buscar saídas no dia a dia para fazer valer seu desejo, como cuidar de si e atividades longe de seu senhor.
Que saídas tem então os casais? Digamos que com boas doses de lucidez e virtude, é possível tornar a relação equilibrada. Em princípio, faz-se necessário identificar essa tal dinâmica entre o casal, que por vezes está tão arraigada, tão padronizada que não se percebe com facilidade. Mas isso não significa que o escravo não sofra por estar nesse lugar, mesmo não tendo consciência. O equilíbrio acontecerá então, onde os papeis possam dançar de um lado para o outro, onde os desejos de ambos possam ser realizados. Onde ambos são sujeitos ativos na dinâmica da relação. Onde não há imposição de desejos, e sim consenso de desejos. Onde não há condições em que um sinta-se amedrontado ou forçado a seguir a vontade do outro. Abrir mão por vezes é necessário, mas deve ser um caminho de dupla via, e isso as vezes é dar a possibilidade do outro existir. E quando ambos exercitam essa postura, a mágica da relação feliz acontece.
Odair J. Comin
Psicólogo Clínico e Escritor
Autor do livro “Mestre das Emoções”.