Em fevereiro deste ano, o músico e artista plástico Miguel Cordeiro decidiu reviver as pichações do personagem Faustino. Os grafites que surgiram em 1979, em pleno o período de abertura política, foram interrompidos em 1985, e estão de volta, segundo o autor, por uma vontade de promover o resgate da memória cultural. Influenciado pela literatura beat, rock and roll e pop art, Cordeiro começou a dar voz às suas reflexões filosóficas através da figura dramática.
Sujeito de frases soltas sobre os anseios do homem brasileiro, como “Faustino atrasa no caixa eletrônico”, ele formou com o personagem um veículo de expressão social. Apesar das especulações e identificação entre algumas pessoas que classificam o alter como uma consciência da classe média, Cordeiro esclarece que a manifestação não depende de patamares da sociedade. “O cara pode ser rico e ser Faustino e pode ser pobre e ser Faustino”, argumentou. “As pessoas mudam muito a interpretação do personagem como se fosse de classe média, mas isso independe de classe”. Em uma das pichações da década de 80 por Salvador, quando ainda era garoto, Cordeiro escreveu: “Faustino faz curso Natureza”.Trinta anos depois, ele compara as necessidades dos indivíduos e afirma que pouca coisa mudou de fato.
“O Brasil é um país muito contraditório”, defendeu. Segundo ele, a inscrição, que faz referência a um curso supletivo que era bastante popular, se relaciona com uma mais recente: “Faustino estuda para concurso de auditor fiscal”. A ideia, contudo, não é fazer arte engajada, e sim brincar com os conflitos que circundam as ações cotidianas, já que o espírito do personagem permanece intricado. O nome, inclusive, também surgiu da curtição com os amigos da época e veio a calhar com a lenda do Fausto, que narra a condição do homem em constante perscruta sobre o sentido da vida e a felicidade.
Confira a entrevista completa com Miguel Cordeiro:
Recentemente o personagem Faustino, que você criou em 1979, voltou a ser comentado nas redes sociais. Gostaria que você me contasse um pouco sobre ele, o motivo das pichações terem sido interrompidas em 1985 e o que te motivou a retornar?
Eu sempre pensava voltar, mas de repente uma vontade foi despertada também por conta da memória cultural. O grafite é muito comentado hoje, mas as conversas ainda giram muito em torno de uma grafite feito por organizações não governamentais. Mas o grafite é muito mais abrangente do que isso. No Brasil, também existe um problema sério de falta de memória cultural, então eu também fiz por isso.
O retorno de Faustino teve alguma coisa a ver com a mudança da prefeitura e a figura de um prefeito que idealiza uma gestão para a classe média, já que muitas pessoas identificam o personagem como uma consciência desse patamar social?
Não. As pessoas mudam muito a interpretação do personagem como se ele fosse de classe média, mas isso é uma coisa que independe de classe. O cara pode ser rico e ser Faustino e pode ser pobre e ser Faustino. Não é dirigido para a classe média. Quando eu comecei a fazer as pichações foi no período do regime militar e era muito sujeira, era uma coisa sujeira.
Nessa época, sua intenção era protestar contra o regime militar?
Não tinha isso. Foi em uma época de abertura democrática e muitas coisas estavam acontecendo no Brasil e a gente era muito novo. Não era arte engajada, não tinha nada a ver com isso. Eu não curto arte engajada. Era uma curtição. O espírito do personagem permanece, os anseios permanecem.
Para você, os conflitos são os mesmos de 30 anos atrás?
Eu acho que sim, as pessoas falam que o Brasil mudou, mas a mudança é muito pequena. O Brasil é um país muito contraditório na evolução. Em 1979, eu fiz “Faustino faz curso Natureza”, que é um supletivo. Hoje “Faustino estuda para auditor fiscal”. As duas coisas tem a mesma motivação e não é só o lado político, tem a questão da arte mesmo. Quando eu comecei grafitar, tinha 22 anos, era um garoto. Foi uma coisa da geração. Mesmo na época teve uma repercussão muito grande. A repercussão hoje é legal porque está surgindo uma nova geração. Depois eu tive um reconhecimento nacional por esse meu trabalho e ate internacional.
Alguma vez você já pintou Faustino, uma imagem dele?
Não existe uma imagem de Faustino, ele se expressa daquela maneira.
Como você escolhe o local que você vai fazer as pichações?
Como eu sou da velha guarda do grafite, a gente tinha uma estratégia de localização para identificar o fluxo de pessoas. Essa era a preocupação, nos anos 70. Cada grafiteiro tinha sua manha, sua receita.
Quais são os bairros?
Orla, Barra, Brotas, Jardim de Alah, uns muros por ai. Mas meu trabalho é muito mais abrangente do que o Faustino. Desde 2006, eu mantenho um blog. Modéstia à parte eu sou um dos artistas brasileiros que tem mais compartilhamentos e são mais acessado através do Facebook. Só a do Faustino que eu postei na semana passada foram mais de 1200 compartilhamentos, uma coisa absurda.
Isso tem a ver com a identificação do público…
Claro, identificação. De alguma maneira, nos anos 70 e 80 existia a identificação mas não existia internet na época. Hoje com o mundo virtual a repercussão é muito maior. Mas ao mesmo tempo ainda continua bastante arcaico, porque não houve democratização da arte e da cultura como um todo. As propostas de mostrar trabalho continuam muito limitadas. E como eu sou um artista de underground é pior ainda. Eu não sou da baianidade, eu não faço uma arte regional, embora ela se expresse também pelo local onde eu estou.
De onde surgiu o nome Faustino?
Ele surgiu como um curtição que veio a calhar por várias circunstâncias. O primeiro grafiteiro que esteve em Salvador se chamava Mancha. Em meados de 79, ele começou a grafitar a cidade e aquilo teve um impacto tão forte que duas semanas depois já tinha uns vinte personagens grafitando por Salvador. O que acontecia aqui estava acontecendo no Rio de Janeiro e em São Paulo e, por incrível que pareça a gente foi contemporâneo até dos grafiteiros internacionais. A gente fazia uma arte similar ao que estava sendo produzido em Berlim, Nova Iorque. Quando eu escolhi o nome do personagem foi uma curtição que depois veio a calhar com a lenda do Fausto, que existe desde a idade média, teatro de mambembes.
Informações de Bahia Notícias