Centenário marca legado literário e afetivo de Zélia Gattai: ‘memorialista’

Zélia Gattai Amado despertou ao público como artista literária aos 63 anos de idade. Não foi um talento tardio que veio à tona. “Para escrever memórias é preciso ter vivido”. Era isso que defendia e contava à neta Maria João Amado. Para celebrar a avó, que completaria 100 anos de vida neste sábado (2), ela compartilhou ao G1 histórias afetivas que marcam a comemoração do centenário.[Até o domingo, o G1 irá publicar uma série de três matérias sobre a vida e obra de Zélia Gattai].

Zélia se descrevia como memorialista, não como escritora. Assim sua carreira literária foi construída e sua obra conhecida. No primeiro livro, “Anarquistas, graças a Deus” (1979), contou histórias dos pais italianos, a chegada deles ao Brasil e a sua própria infância. Em “Um Chapéu para Viagem” (1982), descreveu a vida com o esposo Jorge Amado meio às turbulências políticas da ditadura militar.

“Caracterizo a obra da escritora Zélia Gattai como memorialística, a partir da constatação de que sua escrita não se restringe ao individual, pois contempla o coletivo, a narração das histórias de pessoas comuns e ilustres conhecidos”, atesta Kassiana Braga, pesquisadora da obra de Zélia Gattai e mestra pela Universidade Estadual Paulista (Unesp).

Assim foi construída a carreira de Zélia Gattai ao longo de 16 publicações. Assim também é lembrada pela neta, Maria João Amado. “O ‘Anarquistas’ ela escrevia quando era eu era criança. Ali, ela contava as mesmas histórias que já nos contava. Ela pedia a nossa opinião, perguntava o que a gente achava. Isso é muito marcante”, lembra a neta, que destaca o talento da avó de tornar claras e atrativas as memórias de uma vida.

Além da literatura
Criança, Maria João conviveu com os relatos de infância de Zélia Gattai. “Ela contava, cantava, dançava. Fazia tudo com riqueza de detalhes”. Há pouco tempo, por acaso, a neta encontrou o diário da avó com experiências da vida adulta.

“Achei o diário do período em que ela estava em exílio na Tchecoslováquia, no final dos anos 40. É diário muito pessoal. Ele nem está em exposição. Na infância, tive a oportunidade de conviver com a minha avó menina, com as histórias do ‘Anarquistas’. Agora, me encontro de novo com a minha avó adulta. Para mim essa descoberta foi muito especial”.

Com acervo memorialista e esposa de escritor, Zélia está muito além da literatura e da fotografia, talentos amplamente conhecidos pelo público. Em casa, encantava a todos também na culinária. “Cozinhava muito bem. Me lembro das massas maravilhosas. Ela fazia de tudo. Foi a melhor avó do mundo”.

Uma receita simples ainda tem vida na cozinha da neta, Maria João Amado. Trata-se de uma conserva de beterraba. Ela até ensina como se faz.. “Cozinha a beterraba com casca na água. Depois, descasca e corta em rodelas de meio dedo de largura. Quando eu faço, eu gosto de cozinhar pouco, porque gosto mais crocante. Depois de descascada, você bota para marinar em mistura de água, vinagre e açúcar. A água quebra o vinagre, para que não fique muito forte. Fica uma calda cor de rosa choque muito linda”, ensina. O maior tempero do prato é a saudade.

Caracterizo a obra da escritora Zélia Gattai como memorialística a partir da constatação de que sua escrita não se restringe ao individual, pois contempla o coletivo, a narração das histórias de pessoas comuns e ilustres.
Kassandra Braga,
pesquisadora da obra de Zélia Gattai

Em casa, a lembrança é de uma mulher extremamente doce e carinhosa, características que sofisticam uma personalidade marcante.

“Quando a gente fala doce e carinhosa, pode parecer que era uma senhorinha bobinha. Ela não era nada disso. Ninguém passava ela para trás. Quando alguém vinha tentando enrolar ela, ela já desmascarava. Uma mulher gentil e de referências”, atesta.

Zélia sabia falar cinco idiomas. Além do português, tinha na ponta da língua o inglês, o italiano, o francês, o espanhol e algumas coisas do russo. “O italiano ela aprendeu em casa. As demais nas vivências, nas viagens. Era uma mulher muito inteligente”.

Em Salvador, gostava de passear entre os bairros. Sorvete era na Ribeira. O Parque da Cidade, na Pituba, e Dique do Tororó, no Centro, rendiam boas caminhadas. “Mais que todos esses lugares, o que ela gostava mesmo era a Casa do Rio Vermelho. “O lugar que escolheu para passar a velhice com meu avô, juntos”.

Algumas lágrimas
Hoje, a residência onde o casal decidiu viver a velhice é um memorial público. No lar, que fica na Rua Alagoinhas, nº 33, lembranças dos escritores são projetadas em 15 ambientes dinâmicos e interativos. Para a família, um legado para a história de talentos que levaram a Bahia e o Brasil para o mundo. Por trás das paredes, alegrias consagradas. Como em qualquer família, algumas lágrimas derramadas.

Maria João Amado embarga a voz ao contar que o memorial não ficou pronto para ser visto por Zélia Gattai em vida. “Ela se recusava a morrer antes que estivesse pronto. Era o sonho dela transformar aquela casa em um memorial. Foi ideia dela”, conta. Infelizmente, a avó morreu em 2008, quatro anos antes do sonho, enfim, se tornar palpável. Antes de ser aberto ao público, o local ficou fechado durante 11 anos.

Em vida, Zélia não guardava amarguras. “Ela procurava nas dificuldades, por maiores que fossem, aprendizados”, diz a neta. Ainda assim, levou consigo a dor de ter convivido pouco com o filho mais velho, fruto do primeiro casamento com o intelectual e militante comunista Aldo Veiga. Luís Carlos, o primogênito, decidiu viver com o pai.

“A separação do filho mais velho foi uma dor. Ele morreu no mesmo ano que ela [2008], alguns meses antes. Acredito que isso tenha apressado um pouco morte da minha avó”, revela Maria João Amado. Luís Carlos morreu de câncer em São Paulo.

Perfil
Filha de imigrantes italianos, Zélia Gattai Amado nasceu no dia 2 de julho de 1916. Passou a infância e adolescência no bairro do Paraíso, em São Paulo. Aos 20 anos, se casou com Aldo Veiga, intelectual e militante do Partido Comunista. Da união nasceu o primeiro filho da escritora, Luiz Carlos.

Após oito anos, se separou do marido. Durante um congresso sobre literatura, em 1945, conheceu o escritor Jorge Amado. Com interesses em comum, a dupla passou a trabalhar no movimento pela anistia dos presos políticos. Não demorou para se apaixonarem e viverem juntos.

Em 1948, com a repressão política no país, a família se exilou na Europa por cinco anos e retornou ao Brasil em 1952. Viveu no Rio de Janeiro, na casa dos pais de Zélia, durante 11 anos. Em 1978, após 33 anos de companheirismo, Jorge e Zélia oficializaram a união.

Em 1963, a família Amado fixou residência em Salvador. Na capital baiana, Zélia passou a se dedicar mais à literatura. Além de “Anarquistas, graças a Deus”, é autora dos livros de memórias “Um chapéu para viagem” (1982), “Senhora do baile” (1984), “Jardim de inverno” ( 1988) e “A casa do rio Vermelho” (1999). Também escreveu os livros infantis “Pipistrelo das mil cores” (1989) e “O segredo da rua 18” (1991), em um total de 16 obras.

Baiana de coração, Zélia recebeu em 1984 o título de “Cidadã Soteropolitana”. Mas esta não foi a única honraria recebida pela escritora. Zélia também foi agraciada na França com os títulos de “Cidadã de Honra da Comunidade de Mirabeau” (1985) e a de “Comendadora das Artes e das Letras” (1998). No Brasil, entre outros prêmios literários, recebeu o “Dante Alighieri” (1980).

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