As bananas e os tomates voltaram ao Distrito 9 de Nova Orleans. Burnell Cotlon, veterano das Forças Armadas e nascido no bairro, abriu há três meses uma mercearia na avenida Caffin, esquina com rua Galvez – a primeira desta área, a mais golpeada na passagem do furacão Katrina por Nova Orleans, há exatamente dez anos.
Até agora, quem queria comprar uma fruta ou hortaliça precisava se deslocar vários quilômetros, até um hipermercado Wal Mart ou ao centro da cidade. Agora é possível comprá-las na mercearia de Burnell Cotlon.
“Se você não tem carro, precisava pegar três ônibus”, diz. “Quando chegava em casa, o leite já tinha estragado.”
O Distrito 9 Baixo – Lower 9th Ward, em inglês – é o que nos Estados Unidos se conhece como deserto alimentício, um bairro sem supermercados. A saúde se ressente. Nos EUA, a ausência de comida fresca é um dos indicadores mais confiáveis de pobreza.
A inauguração da minúscula loja é um lampejo de esperança no bairro, encaixotado entre o rio Mississippi, o mangue (chamado localmente de bayou) e um canal. Os diques cederam, e a água destruiu as casas. Cerca de 1.000 pessoas morreram em Nova Orleans, e em nenhum bairro da cidade houve tantas mortes quanto aqui.
O desastre alagou 80% da cidade. As imagens mais dolorosas, as que revelaram ao resto do mundo o abandono dos bairros negros neste país, procediam daqui. Cotlon, de 45 anos, aponta um descampado em frente à sua loja: “Antes do Katrina aqui havia um cinema”.
“E tudo isto”, continua, indicando para a esquerda, “eram casas. E hoje é só mato”.
Nesta quinta-feira, o presidente Barack Obama viaja a Nova Orleans para lembrar o 10º. aniversário do Katrina. Para cada casa construída há quatro ou cinco espaços vazios. Em alguns momentos parece mais uma zona rural do que uma das grandes cidades norte-americanas. A maior parte de Nova Orleans prosperou depois do furacão. No Distrito 9, a cicatriz continua aberta.
A rua Galvez desemboca em um muro de cimento. Cerca de cem pessoas participam de uma reunião de moradores para descerrar uma placa que recorda que aqui, às 7h45 (hora local) de 29 de agosto de 2005, o paredão se rompeu. A ruptura deste e de outros diques de Nova Orleans, por causa de deficiências na construção – e não o furacão Katrina em si – provocou a catástrofe. A frase se repete nas conversas: “Não foi uma catástrofe natural, e sim humana”.
Depois do furacão, o Distrito 9 recuperou apenas 37% da população anterior; 98% dos habitantes são negros. É difícil ver um branco no bairro, mas na reunião em frente ao dique há negros e brancos. Um poeta local, Chuck Perkins, recita versos que recorda como, depois do Katrina, muitos condenavam a cidade a um declínio incontrolável. “Gritamos ao coveiro / espere antes de jogar terra / porque ainda não estamos mortos”, recita Perkins.
Depois, Al Carnival Time Johnson, figura da música local e morador do bairro até o Katrina, se senta ao piano, com uma coroa de rei na cabeça, e canta seu Lower 9th Ward Blues. “Agora já não sei aonde ir, / porque minha casa não está mais lá”, canta.
Todo mundo aqui conserva sua lembrança daqueles dias. Seu próprio blues.
Doris Hicks é a diretora da Escola Martin Luther King, que fica no bairro. Uma mãe-coragem que galvanizou pais e moradores para reconstruírem a escola depois do furacão. “Perdemos 30 alunos e familiares próximos”, diz. Uma década se passou, e o Katrina já é material para os livros de história e as placas comemorativas.
Para os estudantes, não é passado. Porque pode se repetir. E porque a paisagem que lhes rodeia traz as lembranças. A paisagem física: as casas que faltam. E emocional: os familiares falecidos e os que partiram de Nova Orleans para não voltarem mais. “É preciso ir com cuidado – traz más recordações para eles”, diz Keith Theyard, professor de Geografia e História. “Alguns desses garotos ficaram ilhados nos telhados de suas casas, na via elevada, no Superdome”, o ginásio esportivo onde milhares de pessoas se refugiaram em condições insalubres.
Os alunos de Joyce Chapital, professora de língua e literatura, vão à lousa para ler suas redações sobre o Katrina. Eles têm 15 ou 16 anos, mais de meia vida com o furacão nas costas. No sala de aula pré-fabricada, Miss Chapital pede voluntários.
“Eu realmente não tive muito medo nem me preocupei com o furacão Katrina, porque era pequena e alheia ao que estava acontecendo”, lê Jayla Brown.
“Acho que naquele momento não pensei muito no impacto do furacão”, lê Destyni Green. “Lembro que subimos no carro com meu pai, minha avó, minha madrasta e meu irmão. Saíamos rápido de Nova Orleans. Na minha opinião, a viagem foi rápida. Levaram a gente para Destin, na Flórida, onde então comecei uma nova vida. Quando chegamos a Destin moramos no Hotel Wingate. Minha família e eu moramos ali durante um tempo. No hotel, soube pelas notícias que Nova Orleans estava alagada. Recordo vividamente a escola Martin Luther King sob as águas, com pessoas no telhado.”
Uma das últimas voluntárias é Dyneisha Longmire. “Dez anos depois do Katrina, todo mundo continua falando nisso. Entendo que o Katrina afetou muita gente e que foi uma perda para a cidade, mas depois de 10 anos acredito que é hora de olhar para frente”, diz. “Quanto mais falarmos disso, mais doerá.”
Fonte: MSN Notícias