Imagens mostram funcionários da Fundação Casa espancando menores

O Fantástico mostrou imagens inéditas e chocantes. Em uma unidade da Fundação Casa, a antiga Febem, na capital paulista, dois funcionários espancam seis adolescentes, com muita violência.

Socos e tapas. Depois, uma sequência de chutes e também cotoveladas. Essa sessão de espancamento é recente. Aconteceu em maio, no Complexo Vila Maria da Fundação Casa, antiga Febem, na zona norte da capital paulista.

“Eu me surpreendi com essa imagem. Me impressionei. Uma imagem muito forte. Eu não tinha visto uma imagem como essa. São agressões físicas, que ofendem também a dignidade”, afirma Matheus Jacob Fialdini, promotor de Justiça da Infância e da Juventude.

As agressões, sofridas por seis adolescentes infratores, aparecem em filmagens, obtidas com exclusividade pelo Fantástico.

“É a primeira vez em 18 anos de atuação, visitando unidades da Fundação Casa, é a primeira vez que eu assisto essas cenas. E isso choca pela covardia com que os torturadores agiram nesses casos”, diz Ariel de Castro Alves, do grupo Tortura Nunca Mais e Movimento Nacional de Direitos Humanos.

Em uma semana, é a segunda vez que a Fundação Casa aparece com destaque no noticiário. A primeira foi segunda-feira (12). Dezenas de internos pularam o muro e chegaram a usar uma árvore para fugir da unidade Itaquera, na Zona Leste de São Paulo. Quarenta e nove jovens conseguiram escapar. Vinte e dois foram recapturados.

No mesmo dia, também houve rebelião na Vila Leopoldina, zona oeste. Somando esses distúrbios em duas unidades, 41 funcionários foram mantidos reféns e oito ficaram feridos.

“Muitas das vezes, o funcionário é vitima de um trauma dentro da unidade. Nós temos trabalhador com transtorno bipolar, trabalhadores com esquizofrenia, trabalhadores com síndrome do pânico”, destaca Júlio da Silva Alves, presidente Sindicato dos Trabalhadores da Fundação Casa.

O que estaria acontecendo por trás destes muros? A violência – tão comum na época da Febem – estaria de volta, agora na Fundação Casa?

“Que tipo de tratamento, que tipo de medida que a gente está oferecendo para os nossos adolescentes?”, questiona Matheus Jacob Fialdini, promotor de Justiça da Infância e da Juventude.

O Complexo da Vila Maria, onde as agressões foram gravadas, abriga atualmente 521 adolescentes. Para a promotoria da Infância e da Juventude, o ideal seria ter bem menos, cerca de 320.

O complexo é dividido em 8 casas, como são chamados os centros de atendimento socioeducativo. Uma delas é a João do Pulo, onde foram feitas as filmagens das surras que os seis menores levaram. Na unidade João do Pulo, a capacidade é para 40 adolescentes, segundo o Ministério Público. Mas hoje, estão lá dentro 64 jovens infratores, entre 12 e 18 anos, que participaram principalmente de roubos e tráfico de drogas.

Em um vídeo, do dia 18 de maio, dois menores usam telefones celulares dentro da unidade, o que é proibido.

O promotor Matheus Jacob Fialdini faz visitas frequentes ao centro de atendimento João do Pulo e acompanha o processo de reabilitação. “É uma unidade de primários. Eles apresentam um comportamento melhor que em muitas unidades que concentram reincidentes. Uma unidade como essa, em tese, é considerada uma unidade relativamente mais fácil de administrar”, diz Fialdini.

Imagens foram gravadas logo depois de uma tentativa de fuga, no centro de atendimento João do Pulo. É noite de sexta-feira, 3 de maio passado. Na quadra, os jovens ficam sentados, só de cuecas. Wagner Pereira da Silva, o diretor da unidade, acompanha a situação. Ele é formado em direito e seguiu carreira em educação. Perto do diretor, um funcionário repreende os menores pelo motim.

“Exijo respeito e o cidadão vai ser respeitado. Não quero zona na minha casa. Eu estou dizendo a minha parte. Os senhores não estão fazendo a dos senhores”, diz o funcionário.

A direção da unidade deixou registrado, na lista de ocorrências que, nesse dia, nove adolescentes foram capturados antes que conseguissem pular o muro para rua. E que um grupo pôs fogo em alguns objetos.

“Fala a verdade. Você quebrou tudo. Você quer que dê beijo?”, pergunta o funcionário.

O funcionário, que ainda não foi identificado, faz ameaças de matar os menores e levar os corpos ao Instituto Médico Legal. Ele usa a expressão “dar boi”, que significa “facilitar”.

“Vou falar para os senhores: a mãe dos senhores vai visitar os senhores lá no IML. Lá no IML. Vai visitar no IML, porque eu não vou ‘dar boi’. Muitos aí não têm nem a idade que eu tenho de fundação. Senhores, não vai sobrar nada dos senhores”, ameaça o funcionário.

“O que eu percebo hoje são funcionários completamente desqualificados, despreparados, que não recebem uma capacitação permanente”, avalia Fialdini.

A conversa com os jovens continua dentro de um quarto. Depois, em uma sala onde existe um quadro negro, começam as agressões. Primeiro, contra três adolescentes. Numa sequência: um deles leva um tapa e vai para o chão. Outro jovem recebe cotoveladas e socos.

Cerca de 20 segundos depois, as imagens mostram outros três menores apanhando.

“Um rosto de pavor, de medo, de agonia mesmo, com aquele espanto: ‘o que vai me acontecer?’ Com certeza, são ofensas que estão sendo proferidas. Olha o constrangimento: o adolescente acuado, bem no canto da sala”, destaca Matheus Fialdini.

No vídeo, aparecem dois agressores. Eles já foram identificados. São Mauríco Mesquita Hilário e José Juvêncio, coordenadores de área, responsáveis pela segurança no Complexo Vila Maria.

O espancamento durou cerca de cinco minutos. Nas imagens, 20 segundos depois, o diretor da unidade João do Pulo – Wagner Pereira da Silva – aparece do lado de fora da sala.

Ele fica em silêncio por alguns instantes. E vê quando os dois agressores – Maurício e José Juvêncio – falam com um adolescente que tinha acabado de apanhar.

“O que eu vejo: uma sensação de um diretor constrangido, incomodado. Mas até que ponto ele é conivente ou não com esse tipo de prática, só realmente a investigação vai poder apontar”, diz o promotor.

Quanto ao espancamento, o promotor da infância afirma: “É um crime de tortura, é gravíssimo. Isso dá cadeia. A pena é de reclusão. Pena mínima de dois anos de reclusão”.

Na sexta-feira (16), o promotor esteve na Unidade João do Pulo e conversou com vários menores. “O relato deles converge no sentido de que agressões estão sendo praticadas dentro dessa unidade. Eles narraram agressões muito similares a essas que na imagem a gente consegue ver”, afirma Matheus Jacob Fialdini.

O Fantástico mostrou as agressões sofridas pelos seis adolescentes para Berenice Gianella, presidente da Fundação Casa.

Ela relata como viu as imagens: “Repulsa total e absoluta. Isso é uma covardia. Isso é uma agressão gratuita, isso é um ato de tortura que é absolutamente abominável”, avalia Gianella.

Berenice Giannella está no cargo desde que a Fundação Casa foi criada, em 2006, para substituir a Febem.

“Isto era o que se via antigamente na Febem. E apesar de serem os mesmos funcionários que já estavam aí antes, a gente fez todo um trabalho para que isso não acontecesse novamente”, explica a presidente da Fundação.

Ela diz que uma tentativa de fuga, como a que aconteceu na Unidade João do Pulo, não justifica esse tipo de punição: “A fundação tem instrumentos para punir atos de indisciplina dos meninos. Ele pode até ficar cinco dias no dormitório, só saindo para escola e para as atividades educacionais. Então, não há necessidade e você vê que não é uma situação de confronto”, diz Berenice Gianella.

Na noite de sábado (17), os seis jovens agredidos foram identificados. Por questões de segurança, todas as informações deles – como nome, idade e motivo da internação – serão mantidas em sigilo.

“Nós vamos tirá-los dessa unidade e colocá-los em outro local que a gente possa resguardar a integridade física deles”, garante Berenice Gianella.

Assim que viu as imagens do espancamento, a presidente da Fundação Casa tomou a decisão de afastar dos cargos o diretor da unidade João do Pulo e os dois coordenadores de segurança, que aparecem nas imagens agredindo os adolescentes.

“Vamos também informar o caso à policia para instauração de inquérito policial porque isso se configura crime de tortura. Isso também precisa ser apurado na esfera criminal. Daria como punição demissão por justa causa imediatamente. É que eu não posso fazer isso. Se eu pudesse, eu o faria”, ela afirma.

Como são servidores públicos, eles só podem ser demitidos depois de responder a um processo administrativo.

Também já foi afastado do cargo o coordenador de equipe Edson Francisco da Silva, que cuida da segurança na unidade João do Pulo. No vídeo, ele aparece assistindo às agressões e chega a empurrar um adolescente.

O Fantástico tentou falar com os funcionários da Fundação Casa citados nesta reportagem, incluindo o diretor Wagner Pereira da Silva. Mas a assessoria da instituição informou que eles não querem se manifestar.

“Esses funcionários serão, sim, não tenha dúvida disso, serão punidos em todas as esferas: administrativa, civil e criminal. Esses adolescentes serão protegidos”, garante Matheus Jacob Fialdini.

A Fundação Casa atende hoje a 9.236 menores infratores, em 148 unidades espalhadas pelo estado de São Paulo.

“Cada adolescente custa uma média de R$ 7,1 mil por mês. Eles têm psicólogos, assistentes sociais. São quatro refeições por dia. Tem escola, curso de educação profissional, esporte, cultura. E uma segurança que tem que funcionar 24 horas por dia”, destaca Berenice Giannella.

“É claro que nós temos que reconhecer que mudanças ocorreram. Várias grandes unidades foram desativadas e foram construídas pequenas unidades. Mas de qualquer forma, esse vídeo demonstra que nós temos ainda situações extremamente graves que precisam ser enfrentadas pela instituição”, afirma Ariel de Castro Alves, do grupo Tortura Nunca Mais e Movimento Nacional de Direitos Humanos.

Segundo o sindicato que representa os funcionários, 12,4 mil pessoas trabalham na fundação.

“É preciso que o estado invista mais na capacitação, na formação desses servidores e, por que não dizer, uma formação mais técnica. Um treinamento de gerenciamento de conflito, um treinamento de defesas pessoais. Isso é feito de uma forma bem superficial”, ressalta Júlio da Silva Alves, presidente do Sindicato dos Trabalhadores da Fundação Casa.

Nos últimos cinco anos, 65 funcionários foram demitidos por agredir adolescentes.

“A formação, a capacitação é dada. Mas, infelizmente, o desvio de caráter não é possível capacitar”, destaca Berenice Giannella.

“Nós temos que lembrar que esse jovem que é torturado vai sair da instituição. Eles podem se vingar de qualquer um de nós, na medida em que eles saem muito piores do que eles entraram”, completa Ariel de Castro Alves.

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