Parte da crítica perdeu a paciência com Lars Von Trier depois da sua infeliz declaração no Festival de Cannes. Na entrevista coletiva de “Melancolia”, o dinamarquês tropeçou nas próprias pernas ao dizer que “compreendia Hitler”. O escorregão pode ter lhe custado a Palma de Ouro que merecia. E garantiu-lhe antipatia eterna de quem leva tudo ao pé da letra, ou seja, da maior parte das pessoas no mundo atual. Mas convém não subestimar-lhe o poder de fogo.
Transitando, é verdade, em terreno cediço, que pode tanto ser interpretado como invenção ou picaretagem, Von Trier continua a ser um dos mais instigantes cineastas da atualidade. Convém estarmos abertos ao que ele tem a apresentar.
Difícil, por exemplo, ficar indiferente a este “Ninfomaníaca”, do qual só veremos, por enquanto, a primeira parte, e ainda assim cortada de cenas mais fortes. A segunda parte entrará daqui a alguns meses nos cinemas e prevê-se para o Festival de Berlim, em fevereiro, a exibição da versão integral, sem cortes. Talvez um dia essa versão, com quase seis horas de duração, chegue a algum cinema de boa vontade. Ou simplesmente em DVD ou Blu-Ray.
Por enquanto, vamos nos divertir com esta primeira parte. Sim, porque, mesmo no sofrimento, ou nos paroxismos das contradições humanas, é possível tirarmos prazer da descoberta. Com o tema da ninfomania, Von Trier tenta explorar o domínio da sexualidade feminina. O “continente negro” da psicanálise, como dizia Freud, o lado escuro da Lua, o enigma dos enigmas. “O que deseja uma mulher?”, perguntava-se o velho Sigmund, sem encontrar resposta satisfatória em suas elucubrações vienenses. Ora, a ninfomania é essa sexualidade levada ao extremo, uma espécie de idealização do êxtase, do gozo absoluto.
Daí, também, desse espírito de investigação, a estrutura do filme, uma não disfarçada, longa e heterodoxa sessão de psicanálise, na qual a mulher, Joe (Charlotte Gainsbourg na maturidade, Stacy Martin na juventude), se confessa ao homem, Seligman (Stellan Skarsgard), que a encontrou desacordada e ferida no meio da rua.
Joe recorda sua vida (sexual), da perda da virgindade às radicais experiências a que em seguida se entrega. Do tipo: disputar uma caixa de bombons com uma amiga para ver quem consegue transar com mais homens durante o percurso de um trem. Há um quê de artificialismo nesses jogos, dos quais Eros parece singularmente ausente. Da competição com colegas aos jogos com o acaso para administrar sua agenda de amantes, Joe faz da sua vida um delírio sexual ininterrupto, ou quase isso, uma vez que abre exceção para Jerôme (Shia Laboeuf), no qual encontra algo a mais, o tal “ingrediente secreto” do amor.
A questão toda é que Joe se define para Seligman como “uma pessoa má”, ocupada apenas com seu prazer (que não a sacia jamais), sem levar em conta os sentimentos das outras pessoas. Ao passo que Seligman tenta encontrar uma lógica naquilo que escuta, apelando para referências tão díspares quanto a arte da pesca da truta, os números de Fibonacci e a polifonia de Bach. Há uma disparidade aqui, um paradoxo que se entranha na alma de quem assiste ao filme sem preconceitos. A vida de Joe, de uma promiscuidade absoluta, é algo que confina com a desordem mais completa. Porém, na medida em que ela a descreve, Seligman tenta compreendê-la em termos da harmonia mais profunda – a silenciosa ordem dos números, a composição matemática de John Sebastian Bach. A vertigem do sexo num plano, a música das esferas no outro. Como se ordem e desordem, caos e cosmos estivessem contidos na humana dimensão do desejo.
Além dessas tentativas, embora inúteis, de racionalização, há também os procedimentos usados por Von Trier para estabelecer uma distância (crítica) entre o espectador e aquilo que vê. Letras e gráficos escorrem pela tela, menos com intenção didática do que para lembrarmos que estamos diante de uma obra de ficção, de uma construção da arte e não da vida em si mesma. Um distanciamento que produz espanto, e reflexão.
Da mesma forma, essa obra de contrastes alterna uma cruel e realista cena de morte de um personagem no hospital à pequena tragicomédia burlesca do ciúme, em que a mulher abandonada (Uma Thurman) vai à casa de Joe em companhia dos três filhos para mostrar-lhes aquele ninho de pecado e devassidão.
Esse procedimento, em que a mescla de registros busca o choque do pensamento, está na base do estilo duro de Von Trier. A culpa da mãe pela morte da criança que leva ao paroxismo amoroso e à mutilação em “Anticristo”; o casamento feliz que se desfaz na noite de núpcias e antecede o cataclismo em “Melancolia”; a bondade da comunidade que primeiro acolhe e depois escraviza em “Dogville” – são os paradoxos desse cinema de extremos, inquieto e inquietante.
Agência Estado