O Brasil é o terceiro país com o maior potencial hidrelétrico no mundo, atrás só da China e da Rússia, mas não está aproveitando essa vantagem como poderia. Há anos, o conceito de “usinas hidrelétricas reversíveis de múltiplos usos” – plantas que geram energia, controlam as cheias dos rios, fornecem água potável e oferecem áreas de lazer e pesca – é conhecido no país, mas nenhum empreendimento desse tipo foi implantado. Em 2003, o governo de São Paulo chegou a contemplar a construção de uma usina no rio Juquiá, na bacia do rio Ribeira de Iguape, mas acabou desistindo. Se o projeto tivesse ido adiante, não haveria a atual crise de abastecimento de água na capital.
Usinas reversíveis possuem dois reservatórios, um na parte de cima e outro na de baixo, e produzem energia de duas formas: a tradicional, em que a água desce de uma represa para a outra movendo turbinas e gerando eletricidade em momentos de maior demanda, e a complementar, que usa bombeamento reverso para levar água do reservatório inferior para o superior quando há menos demanda, garantindo o reúso.
Na base das montanhas Apalaches, no estado norte-americano da Virgínia, funciona a maior usina reversível do mundo: Bath County. A planta gera 3.000 megawatts e ilumina 500 mil residências. Na China, a usina de Guangzhou, a segunda maior, com capacidade de 2.400 MW, garante a energia de Hong Kong e do sul do país.
“Uma usina reversível é como uma grande bateria. Um projeto desse tipo cairia como uma luva nesse cenário de crise de abastecimento elétrico e de água que estamos vivendo no país”, defende Shigeaki Ueki, ex-ministro de Minas e Energia do Brasil. Ueki ouviu falar do conceito pela primeira vez há 37 anos, quando integrava o governo do general Ernesto Geisel. Desde então, virou um entusiasta da ideia.
Em 2003 um projeto chamou sua atenção: construir uma usina reversível no rio Juquiá, na bacia do rio Ribeira de Iguape, a 80 quilómetros de São Paulo, capaz de gerar 1.500 MW e de fornecer até 80 metros cúbicos por segundo de água para a região metropolitana de São Paulo, ao custo de R$ 5,2 bilhões. No mesmo rio em que a companhia estadual de água, a Sabesp, está construindo o sistema São Lourenço, um reservatório com capacidade para fornecer 4,7 m3/s, em 2017 – ao custo de R$ 2,2 bilhões. Para o abastecimento da população a diferença é grande: de 4,7 m3/s para 80 m3/s.
O estudo para o empreendimento, capitaneado pelos engenheiros Fábio de Gennaro Castro e José Gelázio da Rocha e financiado pela empresa Isoterma Construções Técnicas, foi apresentado à Sabesp em 2004. À época, já se sabia da necessidade de expandir os sistemas de fornecimento de água para a metrópole. Caso o estudo tivesse sido aprovado, as obras poderiam estar concluídas em seis anos, o que significa que, já em 2010, haveria água suficiente para evitar o esgotamento dos sistemas que pôs São Paulo na iminência de um racionamento rigoroso em 2015.
Múltiplos usos
O plano da Isoterma era instalar um reservatório a 900 metros de altitude, em Paranapiacaba, e outro no mar, perto da foz do rio Juquiá, em Juquiá, produzindo energia de dia e bombeando água de volta para cima à noite. “O Juquiá é um afluente do rio Ribeira do Iguape com potencial enorme. A vazão é suficiente para gerar energia de ponta e ainda bombear água para consumo em São Paulo”, explica Castro. “A bacia é preservada e a água tem grande qualidade, o que diminui as despesas com tratamento”, diz o engenheiro.
Durante o dia, a água desceria pela barragem para gerar eletricidade nos horários de pico. À noite, captada no reservatório de baixo, seria conduzida por túneis de adução e bombeada para transpor a Serra do Mar e voltar para o reservatório principal, para abastecer a população. Os 80 m3/s disponibilizados significam mais do que o dobro dos 33 m3/s do sistema Cantareira em condições normais, sem seca.
Bombear água e transportá-la por grande distância não é problema. São Paulo já usa água de Extrema, em Minas Gerais, a 90 quilômetros de distância. “O mesmo tipo de processo é feito em outros países. Em alguns casos, ela é bombeada a alturas de até 2 mil metros”, diz Castro.
Embora fosse bem recebido em 2003, o plano nunca foi aproveitado na Sabesp. Questionada pela PLANETA, a companhia não se manifestou sobre a recusa. Informalmente, o que circula é que é a empresa controlada pelo Estado de São Paulo, não quis investir em um empreendimento de alto custo que comprometeria suas finanças.
Crise anunciada
Em novembro de 2003, o Instituto de Engenharia de São Paulo alertou o governo paulista sobre a necessidade de expandir o sistema de captação de água da região metropolitana. Embora não faltasse chuva, a rede já trabalhava no limite. Estimativas otimistas mostravam que, em 2004, o sistema ofertaria 66,2 m3/s para uma demanda de 65,9 m3/s.
A Secretaria de Saneamento e Recursos Hídricos do Estado, no Plano Diretor de Aproveitamento de Recursos Hídricos para a Macrometrópole Paulista, elaborado entre 2008 e 2013, calculou ser necessário garantir à região um volume adicional de 60 m3/s. O plano admite que, em 2035, a demanda por água na macrometrópole chegará a 283 m3/s.
“Infelizmente, eles não acreditaram nas previsões”, lamenta José Eduardo Cavalcanti conselheiro do Instituto de Engenharia. “Houve um erro de planejamento. A Sabesp menosprezou o risco de desabastecimento na região metropolitana de São Paulo.”
Contraponto
O sistema São Lourenço, que a companhia estatal está construindo no rio Juquiá, vai fornecer 4,7 m3/s de água e abastecer 1,5 milhões de pessoas das regiões oeste e sudeste da Grande São Paulo. Além disso, a Sabesp vem realizando obras de interligação nos reservatórios da capital e dos mananciais mais próximos à cidade. A ligação das represas de Jaguari e Atibainha, por exemplo, permitirá a troca de água do rio Paraíba do Sul com o sistema Cantareira. Entretanto, os mananciais que abastecem os dois complexos estão secando e a obra só ficará pronta em 18 meses.
De acordo com a empresa, outras obras de interligação e aumento da capacidade dos oito sistemas de reservatórios estão em andamento para ampliar o fornecimento de água à metrópole em 25 m3/s.
Para José Eduardo Cavalcanti, a Sabesp peca pela falta de ousadia. No projeto do sistema São Lourenço a empresa poderia captar até 22 m3/s, mas optou por extrair apenas 4,7 m3/s. A escolha foi feita respeitando a lei que garante à Companhia Brasileira de Alumínio (CBA) a prioridade no uso das águas do Juquiá. A CBA mantém várias hidrelétricas no rio para extrair bauxita e produzir alumínio no município de Alumínio, perto de Mairinque (SP).
Ocorre que o contrato de outorga da empresa vence em 2016 e, por lei, o abastecimento da população é prioritário. “Em 2012, mostrei à Sabesp que eles poderiam reivindicar o uso dessa água e potencializar a captação apenas aumentando o diâmetro da tubulação. Mas eles já haviam fechado os contratos da obra e acharam melhor não mudar. Poderiam ter ousado mais, planejado melhor”, diz Cavalcanti.
Cada vez mais longe
A última grande ampliação da rede d’água de São Paulo foi feita em 1993, quando foi implantado o sistema Alto Tietê. O complexo tem capacidade para fornecer 15 m3/s, o suficiente para abastecer 3 milhões de pessoas.
Com a pressão demográfica, a expansão da oferta é uma demanda inescapável em longo prazo, mesmo com melhorias substanciais no funcionamento da rede. As soluções duradouras passam pelo uso da bacia do Ribeira de Iguape, o último grande rio intacto do Estado de São Paulo, previsto no Plano Diretor do DAEE.
Em entrevista à PLANETA, antes de assumir o cargo de secretário de Recursos Hídricos do Estado, em dezembro, o engenheiro Benedito Braga defendeu a captação de águas distantes, a 200 quilômetros, em Registro e na Jureia.
“A solução é buscar águas na represa de Jurumirim, no rio Paranapanema, ou explorar melhor os rios São Lourenço e Juquiá, na bacia do Ribeira de Iguape”, defendeu Braga. A instalação de uma usina reversível na região figura entre as possibilidades. “Se nada disso saiu do papel, foi porque ninguém teve coragem. São projetos de bilhões de dólares”, ponderou Braga.
Fonte: Revista Planeta Terra