Um restaurante que discrimina uma pessoa negra e sozinha deveria perder o alvará para funcionar
Em meio a tantas ONGs, grupos que vigiam cada frase da novela, tenho refletido sobre como o preconceito sobrevive, intenso, no cotidiano. Hoje mesmo fui surpreendido com um texto do escritor Aguinaldo Silva em seu blog. É público e notório que Aguinaldo e eu não somos os melhores amigos. Mas fiquei chocado com a situação que ele viveu. Aguinaldo foi a um restaurante em Petrópolis, da cervejaria Bohemia. Primeira situação de preconceito: não queriam arrumar mesa para alguém sozinho. É fato. Pessoas sozinhas sofrem preconceito em restaurante. Muitas vezes, nos japoneses, já me quiseram sentar no balcão. Como se o solitário não tivesse direito a ocupar uma mesa. Existe preconceito contra a solidão? Existe sim. Uma das primeiras perguntas sempre feitas a alguém que se separou é:
– Mas você está com alguém?
Há uma cobrança contínua de que a pessoa tenha alguém. Mesmo em novelas, atores que não terminam com um par romântico sofrem, como se o papel não tivesse valido a pena. Uma pessoa sozinha num restaurante é observada, encarada, como se tivesse algo errado. Aguinaldo conseguiu sua mesa, improvisada numa área que não era responsabilidade de nenhum garçom. Portanto, ninguém o atendia. Óbvio, não o tinham reconhecido como Aguinaldo Silva, o grande autor de novelas. Aguinaldo é negro. Os garçons o trataram como um cliente de terceira categoria. Reclamou. Quando conseguiu pedir, o garçom, ao trazer o picadinho, espirrou no prato, enquanto seus colegas riam. Segundo o próprio Aguinaldo, ele comeu o picadinho com espirro e tudo. Eu jamais teria feito isso. Talvez atirasse o prato na cara do garçom, e terminássemos na polícia. Mas eu sou branco, não estou acostumado a conviver continuamente com situações de preconceito. Deve ser muito mais difícil para alguém que ao longo de uma vida toda é massacrado por olhares, atitudes, desrespeitos. A não ser quando o reconhecem como o grande autor que ele é.
Eu já vivi situações de preconceito sim, pela pobreza, durante boa parte da minha vida. Às vezes economizava para comprar uma camisa bacana. Entrava na loja do shopping, a vendedora me olhava de alto a baixo, respondia com voz gélida e má vontade. Desprezo absoluto. Uma conhecida, diretora de uma faculdade, é gorda. Veste-se com calças apertadas, camisetas soltas. Ia para o aeroporto. A alça da bolsa arrebentou. Parou no shopping, entrou numa loja e apontou uma bolsa, perguntando o preço. A vendedora:
– Olha, a senhora não tem condições de comprar essa bolsa.
Minha amiga é rica. Chamou a gerente, fez um barulho. Mas existe preconceito contra gordo, contra quem não é elegante e, principalmente, contra negros e quem é ou parece pobre.
É tão internalizado que às vezes a pessoa nem percebe. Tenho um amigo cujo filho é negro. É apaixonado pelo menino e ótimo pai. Se dá bem com a ex, negra. Em conversa, ele não entendia por que eu acho que a existência de um elevador social e outro de serviço é preconceito.
– Se um médico vai dar consulta no apartamento de alguém, não pega o elevador de serviço. Ele é usado para discriminar os de aparência pobre ou negros. – Insisti. – O que impede a empregada do vizinho de subir no mesmo elevador que eu?
Meu amigo não havia pensado no assunto. Fui adiante.
– E o banheiro de empregada? Por que a empregada não pode usar o mesmo que o patrão?
O elevador de serviço e o banheiro de empregada estão tão banalizados no cotidiano que não se pensa no preconceito embutido em sua simples existência. É a discriminação, incorporada pelas imobiliárias.
Tenho um grande amigo, Júlio, filósofo, de meia-idade. É negro. Várias vezes, quando desce sua rua, próxima à Augusta, em São Paulo, nota que ela está deserta. Se há um casal mais adiante, ao vê-lo instintivamente a dupla atravessa para a outra calçada. O preconceito também funciona ao contrário: num recente assalto num prédio de luxo em São Paulo, um casal bem vestido apresentou-se na portaria. Imediatamente, abriram os portões. Foi a senha para depenarem o prédio todo. Em meu prédio, no Rio de Janeiro, várias pessoas entram sem ser anunciadas por estarem bem vestidas. É o preconceito na contramão.
Já fui contra a política de cotas para negros no trabalho. Hoje sou a favor. E também sou a favor de penalidades severas contra quem demonstra preconceito. Um restaurante que discrimina uma pessoa negra e sozinha simplesmente deveria perder o alvará para funcionar.
WALCYR CARRASCO