Todos são iguais perante a lei. Menos os deputados, senadores, governadores, promotores, procuradores, juízes, desembargadores, ministros, presidentes e vice-presidentes da República. Minha proposta de emenda à Constituição Federal (PEC nº 130), elaborada com base nos preceitos também defendidos pela Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) em seu seminário “Juízes contra a corrupção” e aprovada na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara Federal, se destina a acabar com o foro especial para julgamento de crimes dos quais sejam acusadas autoridades dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário.
É injustificável a manutenção da prerrogativa do chamado foro privilegiado nos ilícitos penais, em favor de quem quer que seja, perante o Supremo Tribunal Federal ou quaisquer outras cortes. Tal prerrogativa está degradada à condição de um inaceitável privilégio que transgride o princípio da igualdade e promove o desequilíbrio da cidadania, com enormes danos, próximos ao irreversível, à crença num país justo.
A despeito da decisão histórica do STF, que tornou réus os 40 acusados de operar o “mensalão”, enfrenta-se agora na mais alta corte do país, que recebe cerca de 100 mil ações por ano, uma corrida contra o tempo para que os graves crimes a eles atribuídos pela Procuradoria-Geral da República, como formação de quadrilha e corrupção passiva e ativa, não prescrevam.
O foro privilegiado é um direito que já nasceu retrógrado e injusto. Não podemos mais continuar nos reconhecendo, vergonhosamente, como um país formado por milhões de pessoas que têm os seus direitos primordiais negados – o à justiça é um deles – e uma minoria de “cidadãos especiais” cujos privilégios os aproximam da impunidade.
O Brasil nunca se transformará numa grande nação enquanto houver fome de comida e sede de justiça. Que futuro haverá para o país frente aos princípios que deverão se enraizar na formação de um menino pobre cujo pai, para alimentá-lo, após infrutíferas buscas por emprego e vida digna, foi preso e autuado, conforme prevê a lei, após ser flagrado furtando uma lata de leite num supermercado?
Como convencer esse menino de que as leis do seu país, ao contrário do que indica a bruta realidade de sua vida sem perspectivas, lhe garantem o direito àquela lata de leite, e, ao seu pai, o de ter condições de comprá-la e de prover a sua família?
Que valores vão se arraigar em sua formação se assistir na TV a uma reportagem sobre o foro privilegiado concedido a um juiz cujas imagens mostrem o exato momento em que o magistrado atira mortalmente, sem qualquer chance de defesa e por motivo torpe, na cabeça do desarmado vigilante de um supermercado repleto de milhares de latas de leite?
Inúmeros exemplos de situações criminosas envolvendo autoridades dos Três Poderes poderiam ser igualmente relembrados.
Somos um país cuja desigualdade vai do supermercado aos tribunais, onde o homem comum, na condição de réu ou de vítima, não recebe qualquer tratamento privilegiado. Não é possível que autoridades continuem se alimentando do privilégio de responder a acusações de crimes comuns em cortes especiais num país que tem fome e sede de justiça.
*Marcelo Itagiba (O Globo, 31 de março de 2008)