Projeto no Recife ajuda transexuais a ingressar no mercado de trabalho

Mesmo escondida em uma calça jeans, camisa e sapato de cortes masculinos, Aurora Yett, 19 anos, estava ali. Ainda que travestida de homem jovem em busca de trabalho, as unhas feitas, os cabelos e, sobretudo, os movimentos e a voz transpareciam a mulher que ainda estava em formação, mas que já se apresentava, em modos tímidos, naquela entrevista de emprego em uma loja de doces, no Recife, Pernambuco.

Para se desviar do preconceito que poderia surgir com a revelação da sua transexualidade, Aurora fez uma violência a que muitas pessoas como ela se submetem: escondeu sua identidade como pôde. Usou seu nome de registro, as roupas e a imagem que a sociedade identifica como masculinas. No currículo estava o trabalho como jovem aprendiz em uma distribuidora, além do curso de auxiliar administrativa que fizera durante o estágio – todos antes de se descobrir trans. Mas na hora da entrevista ela não pôde escapar do julgamento.

“A gente percebe muito no olhar. Aquela questão de olhar de cima para baixo, e ficar curioso em saber o que você é, o que está fazendo ali. Porque você não deveria nem estar ali. Porque o meio social não vai te aceitar, então, não tenho que te colocar na minha empresa porque meus clientes não vão gostar. As pessoas te matam com os olhos. Mesmo com você se sobressaindo, mostrando seu conhecimento”, conta Aurora. Ela nunca recebeu um retorno sobre a vaga.

Transexuais e travestis enfrentam dificuldades

A dificuldade de transexuais e travestis em conseguir ingressar no mercado formal de trabalho é, segundo a Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), uma das razões de exclusão desse segmento – e 90% recorrem à prostituição para sobreviver, segundo a entidade. Em Pernambuco, três mulheres criaram uma plataforma online para enfrentar essa rejeição; a Rede Monalisa se propõe a unir candidatas trans e travestis a vagas de emprego de companhias dispostas a recebê-las.

O projeto começou a partir de um evento chamado Startup Weekend Recife Comunidades, onde os concorrentes deveriam criar uma startup com impacto social. A ideia inicial de Fernanda Almeida, Mayara Menezes e Raíssa Ebrahim era trabalhar com a comunidade do Pilar, região pobre do Recife, mas foram as quatro transexuais que o grupo conheceu no local que mudaram completamente os planos das três mulheres. Em menos de 24 horas elas reescreveram a ideia e apresentaram o conceito. Ficaram em primeiro lugar.

Até agora, apenas uma candidata já foi ligada a uma vaga de emprego – uma das quatro transexuais da comunidade do Pilar. Perollah Rayssa teve sua história contada na internet pela Rede Monalisa, mas é avessa a entrevistas.

Ela conquistou uma vaga no grupo Julietto. Segundo quem desenvolve o projeto, foi a notícia que encorajou o grupo a apostar na iniciativa e buscar financiamento. “Ela fazia informalmente cabelo e maquiagem, e agora tem a oportunidade de trabalhar com carteira assinada e todos os direitos”, disse Raíssa Ebrahim.

Cadastro está aberto para trans e travestis

A versão beta do site foi lançada há menos de um mês. Por enquanto, o cadastro está aberto para trans e travestis de todo o país, mas o foco é Pernambuco, onde as integrantes da equipe possuem mais contatos e condições de procurar vagas. Nesse período, o projeto já recebeu 360 cadastros de homens e mulheres.

Aurora é uma das candidatas. Inicialmente o seu objetivo era trabalhar no meio artístico, aproveitando a formação em um curso técnico de Design Gráfico feito recentemente e os trabalhos já realizados com teatro. Depois, ampliou para a área administrativa, onde possui experiência. “A gente podendo estar lá se apresentando com o nome social e como a gente realmente é, e as empresas te aceitarem como você se apresenta é incrível”, afirma, elogiando o projeto.

A Monalisa ainda não abriu cadastro para as empresas, mas as idealizadoras já perceberam que essa tarefa será a mais difícil. Alguns estabelecimentos procuraram a rede para disponibilizar vagas, mas a disparidade entre o número de candidatos e essas companhias ainda é enorme: apenas 5 estabelecimentos se apresentaram.

“Estamos buscando pessoalmente algumas companhias que a gente acha que já têm um amadurecimento maior nesse assunto para tentar fazer vínculos e multiplicar cases. Mas não é uma missão fácil, é bem difícil. Tem preconceito, muitos funcionários acham o projeto lindo mas não aceitam dentro da empresa deles”, revela.

Raíssa explica que a intenção, no futuro, é conseguir gerar renda a partir da Monalisa, mas a prioridade é amadurecer o projeto primeiro. Ainda é necessário abrir a adesão a empresas e montar um sistema automatizado para ligar as oportunidades aos candidatos.

“Estamos fazendo cruzamento de uma maneira muito manual. Queremos fazer esses links com a ajuda da Tecnologia da Informação, com algoritmo e palavra-chave”, explica. Outra ideia é criar um selo para reconhecer empresas que incentivem e respeitem a diversidade de gênero.

Empolgada com a Rede Monalisa, Aurora faz um apelo para que as habilidades sejam analisadas no lugar da identidade de gênero. “A gente é como qualquer um. Tem raciocínio, sabe trabalhar. A gente está ali para fazer bem feito. As empresas precisam abrir seus RHs [Recursos Humanos]”, defende.

A seguir, opina sobre o medo da empresa de ser recusada por clientes por ter entre seus funcionários uma pessoa transexual: “Se você tem uma empresa, pode usá-la para combater o racismo, o machismo, essas coisas todas. Querer um público que seja saudável para a empresa e os funcionários, e que isso seja uma troca”.

Qualificação

O desafio não para na busca por empresas que aceitem transexuais. Quando finalmente surge a vaga, o problema é encontrar uma pessoa qualificada para o cargo.

“As empresas que nos procuraram são, sobretudo, da área de alimentos. Nós não conseguimos ainda efetivar a vaga porque não há perfil para o que elas pediam. Também fomos procuradas por um marca internacional de roupa com uma vaga de estágio universitário em São Paulo. A gente tinha alguns estudantes na plataforma, mas nenhuma pessoa que conseguisse estar de acordo com todos os requisitos pedidos. Não por ser trans, mas pela qualificação mesmo”, lamenta Raíssa Ebrahim.

Das pessoas cadastradas até agora no projeto, a maioria – 258, ou cerca de 75% – estudou até o ensino médio, incluindo os níveis mais baixos de ensino. Apesar disso, do total de 360, 273 candidatos relataram ter experiência profissional prévia. “A gente tem um problema muito básico, porque essas pessoas saem muito cedo de casa, têm dificuldade de se inserir na escola”, explica.

Anne Mota, criadora do blog Transtornada, passou por dificuldades para garantir o acesso ao ensino. Ela conta a experiência em um vídeo da campanha Quem Eu Sou, realizada por alunos de publicidade de uma faculdade particular pernambucana. A jovem recorda que demorou três meses para conseguir se matricular depois de retornar de um intercâmbio nos Estados Unidos (onde assumiu sua transexualidade), porque nenhuma escola particular a aceitava.

“Não vou citar os nomes, mas nenhuma me queria. Elas falavam que retornariam amanhã, e não retornavam nunca. Ou que não havia mais vaga. Foi um período muito difícil para mim. Lembro que tinha uma escola em especial, uma muito grande do Recife, onde eu fui me matricular, e o moço falou: “você não pensa em fazer um supletivo? Seria bem mais fácil para você”. E foi quando minha mãe me defendeu e eu fiquei muito emocionada. Porque naquele momento eu vi o cara dizendo para mim: você não pode estar em uma escola. Você é trans, você não tem o direito de estar aqui”, disse em seu depoimento.

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