Seminário mostra similaridade entre Crimes de Maio e valas clandestinas de Perus

As similaridades, do ponto de vista da apuração dos crimes e da impunidade, de dois casos relacionados à violência de Estado foram discutidas no Seminário Internacional sobre Violência de Estado, ocorrido esta semana na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp): os desaparecidos políticos da ditadura militar enterrados na vala clandestina do Cemitério Dom Bosco, no bairro de Perus, e os chamados Crimes de Maio, ocorridos em 2006, que resultaram em 564 assassinados (505 civis e 59 agentes públicos) e 110 feridos do dia 12 ao dia 21 daquele mês.

O Centro de Antropologia e Arqueologia Forense (CCAF), da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), e a Universidade de Oxford desenvolvem um projeto de pesquisa, há cerca de um ano, que está coletando dados para analisar 71 das execuções por arma de fogo ocorridas em Santos em maio de 2006. O objetivo é criar uma base de dados e estabelecer evidências científicas sobre os assassinatos.

A pesquisa é baseado nas ações da Justiça de Transição – medidas para reparação das violações de direitos humanos –, que, segundo a Unifesp, caminham lentamente no Brasil, passados 32 anos do final da ditadura militar. O coordenador do projeto, professor Javier Amadeo, disse que o pressuposto da pesquisa é que a cultura da impunidade é responsável pela perpetuação do autoritarismo e as graves consequências em termos de violência policial e falta de respeito em relação aos direitos humanos.

“O estudo busca mostrar a existência de um conjunto substantivo de indícios que apontam que as pessoas assassinadas nesses episódios foram mortas como resultado da violência de Estado”, disse Amadeo. Ele disse que tanto os Crimes de Maio de 2006 quanto o caso das ossadas encontradas em uma vala clandestina no Cemitério de Perus apresentam elementos de autoritarismo na estrutura do Estado e em suas políticas de segurança.

Crimes de Maio

Em maio de 2006  houve ataques do Primeiro Comando da Capital (PCC) no estado de São Paulo. Em resposta, agentes do Estado e grupos de extermínio teriam saído às ruas em retaliação e ocorreram mais de 500 execuções.

Diante da dúvida sobre a veracidade ou boataria de toques de recolher, a população do estado teve medo de sair às ruas naquela semana. Supermercados, bares, escolas, universidades e comércio fecharam as portas; os ônibus pararam de funcionar, principalmente na periferia da capital paulista.

O filho de João Inocêncio Correia de Freitas, Mateus Andrade Freitas, 22 anos, foi assassinado por um motoqueiro encapuzado na Baixada Santista. “Meu filho era estudante, estava no terceiro ano do ensino médio. Quando começaram essa matança toda, nós pedimos para ele não ir para a escola, ele ficou em casa. Ele, os colegas, a escola não funcionava. Na quarta, dia 17, a gente estava na sala e ele não ia para a escola, mas as autoridades governamentais falaram para todos não cederem ao medo, para irem à escola, e ele resolveu ir. E aí aconteceu”, disse.

Mateus foi atingido por disparos de arma de fogo, das 20h30 às 21 h, junto com o colega Ricardo Porto Noronha, que também morreu. Alguém gritou para João Inocêncio “teu filho está lá no morro, está lá perto da escola” e foi lá que ele encontrou Mateus no chão. “Naquele dia, eu estava com uma dor lombar, eu queria carregar ele para casa. Já estava falecido, mas estava quente ainda, peguei nos braços, abracei. E depois, com a ajuda de alguém que apareceu, coloquei ele nas costas e vim caminhando, atravessei uma quadra, atravessei outra rua, aí parou um carro de polícia e eles mandaram eu entrar no carro e me levaram para a Santa Casa”. No hospital, veio a confirmação da morte do filho.

Tragédia se repete

Na época dos assassinatos, os números divulgados pela imprensa eram menores, mas já assustavam. “Quando eu comecei a ver os números, falaram: ‘morreram 493 pessoas nessa semana’. Aí estava lá do lado: ‘mortos durante a ditadura: 426’. Eu não estou comparando, só estou mostrando. Eu não sabia desses números. Falei: ‘caramba, em uma semana morre mais gente do que em toda a ditadura’ e a gente sabe da desgraça que foi a ditadura”, disse João Inocêncio.

Sobre as investigações dos Crimes de Maio, que ainda não encontram culpados, ele questiona: “O que temos que saber é por que isso aconteceu, por que o governo não fez nada? E não parou [a matança], porque muitas mães que estão aqui conosco, sentindo a mesma dor, no mesmo projeto de luta, perderam os filhos depois [de 2006] e continuam perdendo. A gente escuta agora, em Santos: morreu um, morreu outro, está crescendo outra vez. Por quê? Porque a Justiça não apura”.

“Eu tenho certeza de uma coisa: quando terminou a ditadura, em 1984, se [o Estado] tivesse feito justiça contra os criminosos torturadores, se [o Estado] tivesse [trazido] a verdade para a sociedade brasileira, seus filhos [vítimas dos Crimes de Maio] estariam vivos. Isso me dói demais”, disse José Luiz Del Roio, do Comitê Paulista de Memória, Verdade e Justiça, aos familiares das pessoas executadas. Del Roio, até hoje, não encontrou o corpo de sua esposa, desaparecida em 1972 durante a ditadura, e tem também cerca de 30 amigos desaparecidos.

Ossadas de Perus

O Grupo de Trabalho Perus (GTP), do Centro de Antropologia e Arqueologia Forense (Caaf), chegou a um universo de busca de 41 desaparecidos políticos que podem estar entre as ossadas encontradas na vala clandestina do Cemitério Dom Bosco. A equipe identificou três pessoas que têm maior probabilidade de terem sido enterradas no local: Dimas Casemiro, Grenaldo de Jesus da Silva e Francisco José de Oliveira.

“A maior probabilidade de eles [três desaparecidos] estarem lá é porque há registro no livro do cemitério de que eles foram enterrados lá e há registro de que houve a exumação do Dimas em 1975. Então, uma das possibilidades é que eles tenham sido exumados e depois reinumados [recolocados] nessa vala”, disse o coordenador do Comitê Científico do GTP, Samuel Ferreira.

Os primeiros resultados vieram a partir de análises dos livros de registros de entrada do cemitério e dos laudos de exame necroscópicos do Instituto Médico Legal (IML); da análise das declarações de óbito e dos livros de fotografia de vítimas do IML. Para comprovação das hipóteses, é necessário exame de DNA, em que há uma comparação do perfil genético dos familiares com os perfis genéticos das amostras dos restos mortais. Até o momento, foram feitas coletas em 74 pessoas de 31 famílias diferentes para futura análise.

Um total de 1.049 caixas contendo ossadas estão na Unifesp para análise pelo GTP. De outubro de 2014 a março deste ano, 626 caixas foram abertas, limpas e analisadas, o que representa 60% do total. O grupo constatou que pelo menos 25% das caixas analisadas têm ossos de mais de uma pessoa. Nas 626 caixas, há 610 indivíduos com sexo e idade estimados: 481 homens e 129 mulheres. Além desses, foram identificadas 15 crianças de até 12 anos.

Traumas constatados

As ossadas de 25 pessoas apresentam lesões compatíveis com ação de projétil de arma de fogo. Já 235 casos apresentam lesões perimortem – que ocorrem no momento da morte ou próximo a ele. Segundo Ferreira, a maioria dos casos com traumas apresenta lesões contusas, produzidas por ação, meio ou instrumento contundente.

“Instrumentos contundentes são instrumentos que têm forma e volume definidos, pode ser um porrete, uma pedra, o chão ou um automóvel. Na perícia, a gente é sempre muito frio, imparcial. A primeira coisa é que é um trauma, pode ser intencional e pode ser acidental, então o corpo fala”, explicou.

Ferreira citou o caso de uma senhora de mais de 40 anos que apresentava uma marca de disparo de arma de fogo, feita de cima para baixo, e de um adolescente de cerca de 16 anos que tem marca de tiro no crânio. “Se considerássemos que pudesse ter alguns acidentes, com certeza, por exames ali, tem vários daqueles casos que são intencionais e esse é o papel da perícia: tentar reconstituir o passado a partir do local e do exame dos corpos”.

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