Um estudo holandês publicado esta semana é o primeiro a testar a eficácia de um transplante de fezes para tratar pacientes com infecção intestinal, em comparação com o uso de antibióticos normais. Os resultados aparecem na revista científica “The New England Journal of Medicine”.
Os pesquisadores analisaram três grupos diferentes. O primeiro incluía 16 pessoas doentes – com diarreia causada pela bactéria Clostridium difficile – que receberam um antibiótico chamado vancomicina, lavagem intestinal e fezes de indivíduos normais, por meio de uma sonda que ia do nariz até o estômago ou o intestino delgado. Os outros dois grupos reuniam 13 voluntários cada – um tratado com vancomicina e lavagem, e o outro, apenas com o remédio.
No primeiro caso, 15 participantes ficaram livres do problema, e nos demais, três e quatro pessoas se curaram, respectivamente.
Segundo os autores, o transplante de fezes de um indivíduo saudável para outro com infecção intestinal grave pode reequilibrar rapidamente a flora bacteriana, o que muitas vezes não é controlado com antibióticos, já que a Clostridium difficile é bastante resistente.
De acordo com o coloproctologista Carlos Frederico Marques, do Instituto do Câncer do Estado de São Paulo (Icesp) e do Hospital Sírio-Libânes, esse tratamento pode levar até dois ou três meses, e idosos são um grupo mais suscetível.
A técnica já foi usada em 500 pessoas em todo o mundo, como último recurso para combater esse tipo de infecção. Nela, a diarreia costuma ter longa duração – de cinco a dez dias –, o risco de recorrência é de 20% a 50% e a pessoa fica muito debilitada, com risco de desidratação pela perda de líquidos e, às vezes, vômitos e febre.
Segundo o jornal “The New York Times”, 300 mil americanos ficam doentes em hospitais por ano em decorrência do Clostridium difficile e 14 mil morrem anualmente. Isso porque cepas cada vez mais tóxicas têm surgido, e os custos de tratamento ultrapassam os R$ 2 bilhões a cada ano.
O que não se sabe ainda é quais bactérias do intestino têm poderes “curativos”, já que o órgão contém centenas ou até milhares de tipos de micro-organismos. Por essa razão, as fezes têm sido transplantadas praticamente intactas, apenas diluídas em líquido (como água salgada).
“O transplante ainda está em estudo, e não adianta só falar em eficácia, precisamos saber a segurança disso. Acho que a pesquisa deve ser vista com ânimo, mas também com cautela”, diz Marques.
Infecção incomum
Segundo o coloproctologista Fábio Guilherme Campos, do Hospital Sírio-Libanês, a infecção por essa bactéria não é comum no Brasil – ele vê um ou dois casos por ano – e ocorre geralmente em ambiente hospitalar, quando o paciente é tratado com antibióticos, o que não precisa ser em altas doses ou por um período prolongado.
Isso porque os medicamentos matam os micro-organismos invasores, mas também aqueles que vivem e fazem bem ao corpo, como a Escherichia coli no intestino grosso, que protege a região dos ataques do Clostridium difficile.
“Essa é uma bactéria oportunista, capaz de viver sem oxigênio e sobreviver aos antibióticos. Ela, então, cresce de forma desordenada”, explica Campos, que também é professor livre docente da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP). O diagnóstico, de acordo com ele, é feito por um exame de fezes.
O médico diz que raramente esse quadro é grave. Portanto, fazer um transplante de fezes seria como “matar uma formiga com um tiro de canhão”, em vez de simplesmente pisar em cima dela.
“Uma proposta melhor, mais fácil e efetiva seria usar probióticos, medicamentos em pó ou cápsulas que contêm bactérias fracas e modificadas, como os lactobacilos, para restabelecer o equilíbrio do intestino”, afirma Campos.
Sobre a nova técnica, o coloproctologista acredita que ela não deva “pegar”, por ser muito invasiva e oferecer risco de contaminação pela sonda, o que poderia piorar a situação.
“Apesar disso, muitas dessas pesquisas acabam servindo para tratar outras situações. Se ficar comprovado que o transplante consegue estabilizar a flora e recuperar a parede do intestino, tornando-a mais espessa, ele poderia ser usado, por exemplo, para impedir que bactérias fossem parar no sangue e causassem uma infecção generalizada”, destaca Campos.
Paciente tratada
Uma das pacientes que já passaram por um transplante fecal é a americana Melissa Cabral, de 34 anos, que não participou do estudo holandês. Segundo “The New York Times”, ela contraiu a bactéria Clostridium difficile em julho do ano passado, após tomar antibiótico para tratamento dentário.
A mulher teve crises frequentes de diarreia, vômito e febre alta, e acabou perdendo 12 quilos e seis meses de trabalho. Inicialmente, ela rejeitou a ideia de fazer um transplante de fezes, por sentir nojo, mas acabou ficando desesperada e testou o método em novembro. Em um dia, segundo Melissa, todos os sintomas desapareceram.