Simone, Adriele, Carla, Andréia, Natalina, Otávia e ao menos 50 outras mulheres. Todas tiveram, em algum momento, desenhados em seus corpos uma espécie de alvo para o feminicídio. Perderam a vida. Para o machismo, para a violência, para ex-companheiros cruéis e raivosos. Ex-maridos e namorados que sabe-se lá quando, como e ainda “se” serão responsabilizados.
Mesmo após suas mortes, as mulheres enfrentam ainda a crueldade dos números. Eles as reduzem a índices e esfregam na cara de todos a impunidade. Das 455 denúncias de feminicídio registradas no Ministério Público da Bahia (MP-BA), entre 2020 e o primeiro semestre de 2023, apenas 50 criminosos foram condenados, segundo dados do Tribunal de Justiça da Bahia (TJ-BA) disponibilizados ao Jornal Metropole. É como se a cada nove feminicidas, apenas um fosse punido. Os outros oito matam e seguem suas vidas.
Rostos, vidas e caminhos cruzados
Simone Maria dos Santos era técnica em enfermagem. Trabalhava no Hospital Roberto Santos, tinha dois filhos já adultos e um cachorro. Era considerada generosa, mas reservada. Casada há quase 30 anos, foi morta a pedradas dentro de seu apartamento no bairro da Vila Laura, pelo marido, que – como a imprensa costuma reduzir – simplesmente não aceitava o fim do relacionamento.
Já Adriele de Almeida Cardoso tinha 36 anos. Era vendedora em um shopping na Avenida Antonio Carlos Magalhães, até que a violência e o machismo cruzaram seu caminho. Na ida ao trabalho foi sequestrada, mas não teve sequer o direito de pedido de resgate. A recompensa era sua vida. Foi morta dentro de um carro, pelo ex-namorado, mais um que não aceitava o fim do relacionamento. Os corpos foram encontrados na manhã do dia seguinte dentro do veículo. A suspeita é que ele tenha usado a arma do pai, policial militar, para matar Adriele e depois cometer suicídio.
Um ano mais velha que Adriele, Natalina dos Santos era considerada uma mulher trabalhadora por seus familiares e amigos. Mãe de quatro filhos e moradora do bairro da Liberdade, chegou a se mudar porque o ex-companheiro, com quem viveu um relacionamento de menos de um ano, sabia como entrar no antigo imóvel. Não foi suficiente. Ele arrombou a porta da nova casa e a matou com golpes de faca na frente da filha de três anos. Antes de morrer, Natalina deixou seu último pedido a quem lhe socorria: “cuidem de meus filhos”. Na lista do feminicida, já estava a morte de uma mulher com quem ele teve um filho e do companheiro dela.
O nome de Andréia Maria Pinto da Costa cruza com o de Simone, Adriele e Natalina. Elas não se conheciam, mas juntas se tornaram a representação, no corpo, no sangue e nos pedidos por justiça, da escalada do feminicídio na Bahia.
Andréia era mãe de um filho de 17 anos e personal trainer em uma academia de Porto Seguro, no sul do estado. Vivia o auge dos seus 42 anos, com uma vida inteira pela frente, a não ser pela presença do ex-companheiro, que a perseguia e ameaçava pedindo dinheiro e reconciliação. Até que foi encontrada morta, com marcas de disparos de arma de fogo e golpes de faca. O corpo da personal trainer foi abandonado em um terreno da cidade. E nem no seu próprio sepultamento, ela teve paz. O ex-namorado foi preso como principal suspeito ao sair do enterro de Andréia.
Crueldade estampada nos números
As histórias não param por aqui. Só neste ano, entre janeiro e agosto, foram 55 mulheres mortas no estado. Não por uma doença infecciosa ou hereditária, uma imprudência no trânsito e nem assalto à mão armada. Para elas, bastou o fato de ser mulher. E aqui de novo a violência dos homens e dos números: a cada quatro dias uma mulher foi vítima de feminicídio na Bahia. A pergunta que fica a todo momento é quem será a próxima vítima na segunda-feira? E depois, na sexta? Será uma vizinha, colega de trabalho, amiga, sobrinha ou uma filha?
Um dia, esse índice já vai ter atravessado o caminho de todos. Afinal, ele vem em uma incessante escalada, pelo menos desde 2020 – cinco anos depois da promulgação da lei que alterou Código Penal estabelecendo o feminicídio como circunstância qualificadora do crime de homicídio e incluindo-o no rol dos crimes hediondos.
Há três anos, foram 85 denúncias de feminicídio oferecidas pelo MP- -BA à Justiça. No ano seguinte, subiu para 116, até chegar em 161 no ano de 2022. De janeiro até aqui, já foram 93 denúncias e apenas 10 condenados no TJ-BA.
Para a coordenadora do Núcleo de Enfrentamento às Violências de Gênero e em Defesa dos Direitos das Mulheres (Nevid) do MP-BA, Sara Gama, não há estranheza com a discrepância entre os números de denúncias e condenados. Isso porque há um outro problema por trás disso: a lentidão da Justiça.
“É muito comum que esses processos se arrastem por mais tempo. Há uma série de recursos e estratégias da defesa para que não chegue ao fim tão rapidamente”, explica a coordenadora, em entrevista ao Jornal Metropole. Ela pontua ainda que evidentemente a ampla defesa do denunciado deve ser respeitada, mas cobra celeridade na conclusão desses casos.
“Não aceitava o fim”
Assim como aconteceu com Simone, Adriele, Natalina e Andréia, na maioria dos casos, os criminosos são aqueles que já estiveram dentro de casa, já dividiram uma cama e compartilharam uma vida. De acordo com o boletim “Elas Vivem”, da Rede de Observatórios da Segurança, 75% dos feminicídios são cometidos por ex-parceiros ou ex-maridos. Homens que, em um dado momento, resolveram que uma briga ou o término do relacionamento seria motivo suficiente para pôr um fim na vida de uma mulher.
Para a advogada e doutora em Estudos Interdisciplinares sobre Mulheres, Gênero e Feminismo, Salete Maria, os números de feminicídio são cruéis e, acima de tudo, preocupantes. Um dos estimulantes, de acordo com ela, é a sensação de impunidade para esses homens. “Somos uma Bahia repleta de desigualdades, favorável à ação dos que acreditam que o crime compensa e dos que percebem que são poucos os casos de feminicídios que foram a julgamento até agora”, afirma.
O roteiro é sempre o mesmo
Antes do tiro, da faca ou pedrada, muitas mulheres sofrem episódios de violência. No caso de Simone, por exemplo, vizinhos contaram que o ex-marido dela já havia tentado arremessá-la da janela. As brigas do casal pareciam um barulho de obra no prédio. Simone não tinha medida protetiva, uma das ferramentas utilizadas para tentar auxiliar na segurança da mulher ameaçada. De acordo com o Anuário de Segurança Pública, em 2022 foram concedidas 14.922 medidas no país, um aumento de 9,1% em relação ao ano de 2021, quando foram 13.598. Ainda assim, muitas dessas mulheres não se sentem protegidas.
“As violências têm caráter multifatorial e multidimensional e não dá para pensar que somente políticas de repressão darão conta da problemática, até porque ainda que políticas repressivas funcionassem a contento, mesmo assim não teria como evitar os feminicídios, já que operam após a sua ocorrência. E como já deixam a desejar da forma que estão sendo implementadas, é preciso que sejam revistas, aprimoradas, monitoradas pela sociedade civil e outros órgãos de controle”, analisa Salete.
O caso de Natalina é um exemplo disso. Ela foi morta pelo ex-companheiro que já havia sido preso pelo assassinato da mãe de seu filho. Só a punição não resolve. É bem verdade, contribui e precisa ser cobrada. Mas sozinha não é solução. Enxergar o problema apenas como uma falha de conduta pessoal é eximir a sociedade e o poder público da responsabilidade. Esses homens podem até passar a ser punidos, mas mulheres ainda serão mortas.
Fonte: Metro1